Marco Aurélio Garcia (Porto Alegre, 22 de junho de 1941 – São Paulo, 20 de julho de 2017), comumente conhecido por seu acrônimo MAG, foi filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT). Foi professor no Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E ocupou o cargo de assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais nos governos Lula e Dilma Rousseff.
Marco Aurélio Garcia (22/6/1941-20/7/2017) foi – junto com Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff – um dos principais formuladores e executores da política externa conhecida como “altiva e ativa”.
Além disso, MAG foi protagonista do debate sobre as tentativas de construção do socialismo no século XX e XXI e, também, do debate sobre a estratégia da esquerda brasileira.
MAG faleceu pouco depois de completar 76 anos, no dia 20 de julho de 2017, há exatos quatro anos, vítima de um infarto fulminante que o surpreendeu em seu apartamento na Praça da República, no centro de São Paulo capital.
Para compor este verbete em sua memória, contamos com as seguintes fontes:
*a “Coleção MAG”, composta até agora por três volumes: A Opção Sul-Americana, Construir o Amanhã e Notas para Uma História dos Trabalhadores. A organização destes volumes foi feita por Bruno Gaspar, Rose Spina e Dainis Karepovs. Os três livros estão disponíveis gratuitamente para download. A coleção foi edita sob o patrocínio da Fundação Perseu Abramo e do Instituto Futuro – Marco Aurélio Garcia.
*o dossiê publicado pela revista Teoria e Debate, com artigos entre outros de Monica Hirst, Maria Regina Soares de Lima, André Singer, Marcelo Ridenti, Jorge Mattoso, Martín Granovsky e Walnice Nogueira Galvão.
*a entrevista feita pelos professores Alexandre Fortes, do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ, e Paulo Fontes, do Instituto de História da UFRJ. A entrevista foi publicada originalmente em Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho (LEHMT) da UFRJ.
Começamos citando os professores Alexandre Fortes e Paulo Fontes:
“Marco Aurélio Garcia, o MAG, como era conhecido, nasceu em 22 de junho de 1941. Militante do movimento estudantil, aderiu ao Partido Comunista do Brasil (PCB) no final dos anos 1950. Foi vice-presidente da União Nacional dos Estudantes entre 1961 e 62. Após o golpe de 1964, aderiu à Dissidência do Partido Comunista no Rio Grande do Sul e, em seguida foi um dos fundadores do POC (Partido Operário Comunista). Em 1967, ele e a socióloga Elizabeth Lobo, com quem era casado, partiram para a França. Chegaram a voltar para o Brasil e depois foram para o Chile durante o governo da Unidade Popular liderado por Salvador Allende. Com o golpe de 1973, exilaram-se definitivamente na França, onde completaram sua formação acadêmica”.
De volta ao Brasil, depois da Anistia de 1979, MAG trabalhou profissionalmente como professor, tendo sido parte do Departamento de História da Universidade de Campinas e um dos criadores do Arquivo Edgar Leuenroth.
Conforme nos lembra Cláudio Batalha, MAG “foi um dos iniciadores do GT “Partidos e Movimentos de Esquerda” junto à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), junto com outros pesquisadores como João Quartim de Moraes e Daniel Aarão Reis Filho. No âmbito desse GT foi retomada a ideia de elaborar a história da esquerda no Brasil, que depois foi mudada para uma história do marxismo no Brasil, dando origem à publicação da coleção homônima de seis volumes a partir de 1991. Na qual, paradoxalmente, Marco Aurélio Garcia nunca chegou a escrever, possivelmente porque essa publicação coincidiu com o período em que assumiu a Secretaria de Cultura de Campinas na gestão de Jacó Bittar e depois desempenhou funções de crescente responsabilidade no PT, resultando no seu crescente afastamento da vida acadêmica”.
Vale dizer que seu envolvimento com a vida partidária não o afastou das preocupações ditas “acadêmicas”. Como prova disso, Batalha lembra que “em 1997, dentro da Fundação Perseu Abramo, [MAG estruturou] o Projeto Memória e História do PT, o qual, em 2011, se transformou no Centro Sérgio Buarque de Holanda, instituição responsável pela preservação da memória do partido”.
Voltando aos anos 1980: como tantos outros que regressaram do exílio, MAG manteve intensa atividade política. Destaco sua participação, com Eder Sader e outros, na criação da revista Desvios e , claro, sua militância no então recém-criado Partido dos Trabalhadores, em cuja direção nacional chegou a ser presidente nacional (em 2006), além de por muitos anos ter sido membro da comissão executiva nacional, vice-presidente e, com destaque, secretário de relações internacionais.
MAG também foi secretário de Cultura de Campinas (1989-1990) – quando se criou a revista Trabalhadores – e depois encabeçou a secretaria de Cultura de São Paulo capital (2001-2002).
Entretanto, a partir dos anos 1990, a atividade política de MAG foi se concentrando nas relações internacionais do PT e na política externa do Brasil.
Ele foi um dos fundadores, em 1990, do Foro de São Paulo; e que foi de 2003 a 2016 Assessor-Chefe da Assessoria Especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República.
Tanto na SRI quando na PR, MAG contou com um conjunto de colaboradores, entre os quais cito Nani Stuart, Bruno Gaspar, Audo Faleiro e Ricardo Azevedo.
Também cabe citar sua mãe Sonia, seu neto Benjamim, seu filho Leon e – conforme diz um texto de Jorge Matoso – “sua esposa, companheira de vida, militância e mãe do Leon, a Beth Souza Lobo”, falecida “em um acidente de automóvel em março de 1991 perto de João Pessoa. Na Paraíba, Beth foi dar palestras no Mestrado de Ciências Sociais da UFPB e em Campina Grande entrevistou mulheres militantes sindicais rurais”.
A respeito, cabe ler o texto que MAG escreveu sobre Beth, intitulado “AUSÊNCIA E PRESENÇA” e publicado na revista Teoria e Debate n. 14, abr/ma/jun. de 1991.
A vida e a obra de MAG são deveras interessantes.
Infelizmente, ele mesmo não nos deixou uma autobiografia, nem mesmo publicou livros autorais que sistematizassem sua opinião.
Aliás, salvo engano, ele foi “dispensado” da – para alguns – via crucis de elaborar uma dissertação de mestrado e uma tese de doutorado.
Segundo informou um de seus alunos, “ele e a Beth iniciaram [a pós graduação] sob orientação do Lucien Goldman em Paris. Ela concluiu, mas não tenho certeza no caso dele. (…) No Brasil, nos anos 70 havia muita gente lecionando em universidade sem ter pós-graduação, mas não sei se ocorria na França. No Brasil ele estava inscrito como aluno de doutorado na USP tendo o Leôncio [Martins Rodrigues, 1934-2021] como orientador. Essa era a tese que nunca terminou. Mas ele pode ter entrado direto no doutorado”.
Como disse Bruno Gaspar, pouco antes de falecer MAG tinha planos de escrever muito. Segundo Jorge Matoso, “Marco Aurélio recomeçou a organizar em seu apartamento os livros e um conjunto amplo de materiais dos mais diversos tipos (anotações, cartas e escritos variados) acumulados e guardados em muitas caixas ao longo de muitos anos. Esse processo – que já gerava palestras e deveria resultar em textos e livros que favorecessem o mais amplo conhecimento desta sua atividade única, militante e intelectual nas relações internacionais – foi lamentavelmente interrompido por sua morte repentina”.
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A maior parte das pessoas que conheceu MAG despois de sua volta do exílio pouco sabe de sua vida antes do golpe militar de 1964. Parte desta lacuna é preenchida pela entrevista supracitada, feita no dia 18 de novembro de 2009 e que cobriu basicamente os primeiros 23 anos de vida de MAG.
Por diversos motivos, não aconteceu a continuidade da entrevista, que deveria cobrir o período pós 1964.
Naquela entrevista, Marco Aurélio fala de sua família (gaúchos progressistas de classe média), fala do ambiente político e cultural do Rio Grande do Sul e conta um detalhe particularmente interessante: [minha] “família é laica. Meus pais não casaram no religioso, eu não sou batizado, eu não casei no religioso, meu filho não é batizado. Laicidade. O meu avô materno era espírita, mas se comportava como um laico, de uma maneira geral. E, de uma certa maneira, tinha um certo componente anticlerical na família”.
MAG também conta muitos episódios curiosos, entre os quais: “Havia um programa lá em Porto Alegre, na Rádio Guaíba, que era um grande sucesso, e eu terminei me inscrevendo. Participei de treze programas e ganhei. O prêmio foram duas viagens para Paris. Então fui com meu pai. Uma coisa interessante, porque eu nunca tinha saído de Porto Alegre. Eu não conhecia nem São Paulo nem o Rio de Janeiro. (…) Eu fui a Paris em janeiro de 1959, passei um mês, fui a Lisboa”.
O mais importante da entrevista, obviamente, é o que ele nos conta acerca de sua vida intelectual, de sua militância estudantil, de seu ingresso no Partido Comunista.
Em julho de 1961 Marco Aurélio foi eleito vice-presidente da UNE, mais precisamente “vice-presidente da Reforma Universitária e Cultura”.
Era uma época de efervescência política e cultural, no qual a UNE estava metida dos pés à cabeça: “Nós organizamos a greve do 1/3, que foi uma greve que paralisou as universidades brasileiras, todas, sem exceção (Todas! Isso é uma coisa espantosa) durante quase dois meses”.
MAG nos conta que viveu “um ano no Rio de Janeiro, e foi um momento que eu conheci o Brasil. Salvador tinha me chamado muito a atenção. (…) UNE Volante. Então nós fomos para Manaus, Belém do Pará, Piauí”.
Ele destaca que naquela época conhecer vários estados do país não era algo comum, nem mesmo para pessoas de “classe média”.
Além disso, há detalhes interessantíssimos dos contatos que MAG manteve – na véspera da renúncia – com o presidente Jânio Quadros, com o governador Leonel Brizola e com San Tiago Dantas, quando este era cotado para ser primeiro-ministro.
Quando terminou sua gestão como vice-presidente da UNE, MAG e outros foram participar do congresso da União Internacional do Estudantes, em agosto de 1962, na cidade de Leningrado, hoje renomeada de São Petersburgo. Foi também à Polonia, a Romenia, a Iugoslávia e a Tchecoeslovaquia.
De lá ele volta para o Brasil, onde se dedica a concluir sua formação universitária e organizar o Partido Comunista. Além de ter sido eleito vereador em Porto Alegre, de fato pelo PCB mas de direito pelo “Partido Republicano”. Em seguida vem o golpe, a ruptura com o PCB e o exílio, “entre 1970 e 1979, quando foi professor na Universidade do Chile (na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) e nas Universidades de Paris 8 e Paris 10, da França”.
Como se pode constatar por essa breve resenha, foi uma vida venturosa, de uma pessoa com qualidades humanas muito interessantes, que são fortemente destacadas por todos os que escreverem no Dossiê publicado recentemente pela revista Teoria e Debate, por ocasião de seu aniversário de nascimento (junho de 1941).
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Ao analisar a vida e obra de MAG, percebemos que suas posições sobre a política externa do Brasil foram construídas a partir da reflexão acerca dos dilemas programáticos e estratégicos da esquerda brasileira.
Embora esta reflexão envolva outros momentos e outros aspectos, um ponto importante foi a coleção de textos escritos por MAG acerca da esquerda brasileira.
Nas palavras do professor Marcelo Ridenti: “em 1979, voltando do exílio após a anistia, Marco Aurélio Garcia produziu uma série lendária de artigos para o jornal alternativo Em Tempo sobre a história da esquerda brasileira de 1960 a 1979”, “antecedendo em oito
“Em Tempo iniciou a publicação da série Contribuição à História da Esquerda Brasileira em agosto de 1979, chegando a um total de 29 artigos, 22 deles de Marco Aurélio, autor também de mais duas matérias e respostas a várias cartas”.
Foram 34 as “organizações elencadas, a partir de três eixos: o caráter da revolução brasileira (nacional-democrática ou socialista), o tipo de organização revolucionária (partido ou grupo de guerrilha), e as formas de luta para chegar ao poder (pacífica ou armada – insurrecional ou guerrilheira – com ênfase no campo ou na cidade), com diversas posições híbridas ou intermediárias entre cada alternativa. Essas três coordenadas analíticas tornaram-se tão correntes em estudos posteriores que muitas vezes se esquece sua origem na obra de Marco Aurélio”.
Não cabe aqui fazer uma análise propriamente historiográfica deste tour de force, nem tampouco de suas referências intelectuais, entre os quais Ridenti cita E. P. Thompson, Claude Lefort e Cornelius Castoriadis.
O que parece indispensável destacar é que este balanço da trajetória da esquerda brasileira contribuiu muito para MAG construir sua “visão” pessoal acerca de qual deveria ser a “linha” adotada pela esquerda brasileira a partir dos anos 1980. Esta visão/linha é o “núcleo duro” a partir do qual MAG foi construindo sua abordagem acerca da política internacional do PT e da política externa do Brasil.
Segundo Ridenti, “havia nas entrelinhas a esperança de que o novo partido que se gestava [Ridenti se refere aqui ao Partido dos Trabalhadores] pudesse ser a superação das tradições anteriores, notadamente a bolchevique e a social-democrata, indo além também do anarquismo, do trotskismo, da esquerda cristã, do trabalhismo, identificando-se com propostas autonomistas”.
Mais adiante MAG se concentrará no objetivo de superar apenas duas destas tradições: a comunista e a social-democrata. A relativa desatenção concedida ao trabalhismo e ao desenvolvimentismo ajudam a compreender alguns dos dilemas intelectuais e políticos que ele enfrentou, não apenas no período em que foi assessor da presidência da República (2003-2016), mas principalmente depois do impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Citamos a seguir três textos – de 1990, 2003 e 2015 – para exemplificar o que foi dito acima.
O primeiro deles é o artigo intitulado “Terceira via: a social-democracia e o PT”, publicado pela revista Teoria e Debate nº 12, em novembro de 1990.
O segundo texto intitula-se “Pensar a terceira geração da esquerda” e corresponde a uma palestra feita por MAG no seminário internacional “História e perspectivas da esquerda”, realizado na USP entre os dias 13 e 15 de agosto de 2003.
O terceiro texto, por sua vez, corresponde a participação de Marco Aurélio Garcia no Colóquio Internacional “Claude Lefort: a invenção democrática hoje”, na Universidade de São Paulo, em 14 de outubro de 2015.
No artigo de 1990, Marco Aurélio afirma que seria “óbvio” que “o socialismo não era o objetivo imediato do partido”: “somente cabeças muito acaloradas poderiam imaginar que o socialismo se colocava como questão de atualidade imediata”, deixando claro que nisto “o PT não se diferenciava dos partidos comunistas”.
Nessa fórmula sintética podem se confundir – ou melhor, pode não se distinguir – duas questões diferentes: uma é saber se a conquista do poder e a construção de uma sociedade socialista eram os objetivos táticos imediatos do PT; outra é saber se o socialismo era o objetivo estratégico ou se antes dele se pretendia alcançar um objetivo intermediário (uma etapa de desenvolvimento capitalista, uma revolução democrático-burguesa, uma fase de libertação nacional etc.).
Poucos anos antes do texto de MAG ser escrito, o PT realizara um congresso (denominado 5º Encontro Nacional, de 1987) onde foi aprovada uma resolução que afirmava o socialismo como objetivo e recusava explicita e nominalmente “uma nova teoria das etapas”.
Portanto, quando MAG fala que “nisto” o PT não se diferenciava dos partidos comunistas, ele deve estar se referindo a atualidade imediata, no sentido de atualidade “tática” do socialismo. Mas o que de fato começou a ocorrer, da parte de alguns setores do PT ao longo dos anos 1990, foi o deslizamento para uma nova “teoria das etapas”, a saber: primeiro caberia lutar contra o neoliberalismo e depois lutar contra o capitalismo/diretamente pelo socialismo.
Voltando ao texto de 1990: nele MAG diz que a diferença entre comunistas e petistas estaria na “forma” pela qual se “articulam a luta por este programa democrático-popular com os objetivos socialistas”.
E neste ponto ganharia “considerável importância” a “discussão com a social-democracia e a pergunta sobre as perspectivas de sua vigência em países como o Brasil”.
A esse respeito, Marco Aurélio registra que existiriam duas posições: numa “as reformas teriam um caráter cumulativo e terminariam levando ao socialismo, pensado como regime qualitativamente distinto”; noutra “não havia uma diferença qualitativa entre capitalismo e socialismo. O socialismo passava a ser o próprio movimento pelas reformas”. Destacando que se trata de uma questão “fundamental para a discussão estratégica da esquerda”, MAG defende que ela deveria ser respondida não “discutindo a tese geral, em abstrato, mas examinando no contexto brasileiro”, no qual o caminho para as “reformas” exigiria um “agudo processo de lutas sociais”, uma “rearticulação da luta pela democracia política com a democracia social e destas duas com o socialismo”, com a luta pelo socialismo tendo “que levar em conta o potencial político-revolucionário das reformas sociais e tirar as consequências disto no plano da luta pelo poder”.
A esse respeito, Marco Aurélio afirma que “um dos avanços do PT é abandonar a ideia do poder como um lugar a ser tomado e reformado (proposta social-democrata) ou tomado, destruído e reconstruído (proposta revolucionária clássica)”.
MAG alerta que “esta inovação, pelo menos para o debate político brasileiro, tem de ser aprofundada, sob pena de, aí sim, o PT sucumbir a uma das teses mencionadas e das quais se distanciou”.
O texto de 1990, ao apresentar as coisas desta maneira, releva:
*uma tradição que se construíra no próprio movimento comunista – o denominado eurocomunismo – sem falar nas reflexões do professor Carlos Nelson Coutinho e outros militantes destacados do comunismo brasileiro;
*a experiência latino-americana que buscou escapar do dilema exposto por MAG: o Chile da Unidade Popular (1970-1973). MAG esteve no Chile neste período e tinha opiniões fortes a respeito, mas o tema não comparece no texto de 1990;
*as experiências e os dilemas do trabalhismo e do desenvolvimentismo de esquerda, especialmente no período anterior ao golpe de 1964 (dilemas que voltariam com força no período dos governos Lula e Dilma).
Obviamente MAG não desconhecia nada disso. Por isso mesmo cabe perguntar: por qual motivo não incluiu (nem mesmo citou) estas três questões na equação?
Há vários motivos possíveis, dos quais citamos um: frente ao iminente colapso da URSS, muitos militantes de esquerda buscavam descobrir o ponto na história a partir do qual a tragédia se tornara irreversível. Alguns localizavam este ponto na eleição de Gorbachev para a secretaria geral do Partido Comunista soviético (PCUS), outros no período Brejnev, outros no XX Congresso do PCUS, outros na ascensão de Stálin…
Fica a impressão de que para MAG o “nó” estaria na trágica cisão ocorrida no movimento socialista, especialmente entre 1914 e 1921. Neste sentido, a defesa de uma esquerda pós-socialdemocrata e pós-comunista seria uma tentativa de “rebobinar e recomeçar”.
Esta maneira de ver as coisas tem seus pontos fortes. Mas tem também seus pontos fracos. O principal deles é que a cisão socialdemocracia/comunismo não foi produto de um mal entendido; resultou de diferentes opções frente a situações históricas determinadas. Portanto, não basta querer uma esquerda que seja pós-comunista e pós-socialista. É preciso existir uma situação histórica em que esta esquerda possa prosperar. O fracasso do eurocomunismo, a derrota da Unidade Popular e os dilemas do trabalhismo e do petismo no Brasil demonstram – na minha opinião – que as bases objetivas da cisão entre socialdemocracia e comunismo não foram superadas; motivo pelo qual, no final das contas, mesmo que por caminhos diferentes, as ideias, as pessoas e os partidos acabam voltando ao dilema original.
Sigamos a análise do texto de 1990.
Defendendo articular “a luta pela democracia política com a luta pela democracia social”, articulação que se desdobraria “no plano social e no plano institucional”, MAG propõe que o PT deveria assumir “uma postura republicana” que demonstraria “como o Estado está a serviço das classes dominantes e não é um instrumento de conciliação social, como pretende a ideologia dominante”.
Em resumo, MAG defendia que “para construir seu projeto de transformação socialista do Brasil”, o PT precisaria “escapar do dilema bolchevismo x social-democracia”, evitando tanto a “defesa intransigente da ortodoxia” quanto o “abandono da noção de socialismo em proveito de um (neo)liberalismo que nem mesmo os (neo)liberais praticam”.
Desde 1990 até hoje, esta “inovação” pretendida por MAG segue carente de aprofundamento.
Por “inovação” refiro-me à ideia de que “um dos avanços do PT é abandonar a ideia do poder como um lugar a ser tomado e reformado (proposta social-democrata) ou tomado, destruído e reconstruído (proposta revolucionária clássica)”.
O artigo que analisamos anteriormente foi publicado em novembro de 1990. Uma década, dois anos e alguns meses depois o PT chegaria ao governo federal.
Hoje, parafraseando MAG, só “cabeças acaloradas” seriam capazes de sustentar que deu tudo “certo” ou tudo “errado”. Afinal, o PT chegou onde a esquerda brasileira nunca havia chegado, o que contribuiu para mudanças importantes do ponto de vista da maioria do povo. Mas também é preciso dizer que o PT fez escolhas que, ao fim e ao cabo, confirmaram esplendorosamente que o Estado está mesmo “a serviço das classes dominantes”, cuja derrota dependeria de um “agudo processo de lutas sociais” que não compareceram, nem (na minha opinião) foram devidamente incentivadas por quem poderia e deveria fazê-lo.
Há muitos motivos para o que ocorreu, bem como para as escolhas feitas pelo Partido dos Trabalhadores, especialmente entre 2003 e 2016.
Uma delas é que o PT não era social-democrata, mas tinha muitos candidatos a bolchevique. Daí resulta que – ironia da história – na tentativa de escapar do dilema bolchevismo x social-democracia, muita gente tenha deixado de ser “bolchevique” mas pouca gente tenha deixado de ser “social-democrata”.
O que – misturado com a influência do trabalhismo e do desenvolvimentismo – desembocou em um equilíbrio ecológico-ideológico que certamente não correspondia ao que Marco Aurélio defendia e pretendia.
Um dos efeitos disto foram as opções políticas feitas, durante os governos Lula e Dilma, em nome do “republicanismo”, mas numa direção oposta à desejada por MAG.
Aliás, a esse respeito vale reler o que diz o próprio MAG acerca do golpe de 1964, na entrevista concedida a Alexandre Fortes, sua crítica ao “despreparo, uma subestimação, completamente, dos efeitos que uma mobilização da direita poderia ter. (…) nessa época, o Estadão publicou uma série de artigos do [jornalista] José Stacchini, que ele reuniu num livro primoroso, extremamente inteligente, chamado “Março de 64: Mobilização da audácia”. Onde ele, como o título diz, credita em grande medida o êxito do golpe a essa “mobilização da audácia”.
A “audácia” que faltou a esquerda, compareceu de sobra na direita, tanto em 1964 quanto em datas mais recentes.
Lendo os textos de MAG, não resta dúvida de que ele tinha consciência plena destes problemas e limites. Mas frente a estes problemas e limites, ao menos nos textos e nos espaços públicos, predominava nele a tendência a apontar que o “copo” estaria “meio cheio”. Acreditamos que isto se deva, entre outros motivos, a algo simples: outra atitude colocaria em questão as premissas teóricas, programáticas e estratégicas a que nos referimos anteriormente. Mas seria subestimar a inteligência de MAG achar que este seria o motivo principal. Há pelos menos dois outros motivos que pesaram mais: as conquistas reais obtidas pela classe trabalhadora e os êxitos reais da política externa.
Vários destes êxitos não sobreviveram à contraofensiva reacionária. Mas eles não são menos reais por isso e são aqueles êxitos que explicam o fundamental da dificuldade que MAG tinha em perceber o “lado B” de sua aposta programática e estratégica.
Aqui é preciso explicitar o seguinte: no terreno da política geral do PT e do governo, a influência de MAG foi relativamente menor, embora em alguns momentos pontuais possa ter sido muito expressiva (por exemplo, no final de 2006). Mas no terreno da política internacional do PT e no terreno da política externa do governo, MAG sempre exerceu grande influência.
A esse respeito, o já citado texto de 1990 diz que a escolha dos interlocutores internacionais do PT “está vinculada a esta preocupação de construir um projeto socialista para o Brasil levando em conta as ricas, e às vezes dramáticas, experiências do socialismo internacional. Abre-se fundamentalmente para uma nova esquerda que se constitui (ou se reconstrói) politicamente na América Latina e que enfrenta vicissitudes semelhantes às nossas”. “Dialoga, sem preconceitos, com a social-democracia, e com as expressões do comunismo renovado que se manifestam em países como a Itália ou mesmo no Leste Europeu”. “Colabora, ainda, com forças alternativas, como os verdes alemães, o SOS Racisme da França e outros movimentos que buscam saídas originais para a crise da esquerda”.
MAG prevê que a “reconstrução” do Leste Europeu “se dará em meio a duros embates sociais e políticos, desmentindo a tese de que a luta de classes acabou”. Diz que a social-democracia “será confrontada com a necessidade de impulsionar lutas sociais e políticas nesta região ou perder o controle do processo para os conservadores, como já ocorreu”. E que a “aplicação dos programas de ajuste em quase toda a América Latina colocará a esquerda mundial (sic) diante do desafio de oferecer um programa de reformas que compatibilize o combate a problemas emergenciais (…) com a necessidade inadiável de resolver questões estruturais”. O “mundo não assiste ao fim da história hoje, como pretendem alguns, mas, ao contrário, a uma aceleração sem precedentes desta”.
Além disso, naquele texto de 1990, MAG considerava possível que se estivesse “assistindo ao fim de um ciclo na história do socialismo, que tem seu início com a formação da social-democracia e que em boa parte deste século foi dominado pelo conflito entre socialistas e comunistas”. Para ele, o PT seria parte integrante “deste processo de transição da esquerda mundial. Neste sentido, é um partido pós-social-democrata e pós-comunista. Constrói sua identidade não combatendo estas correntes, mas dialogando criticamente com elas”.
Podemos discordar de parte desta análise – entre outros motivos por fazer mais sentido na Europa do que no resto do mundo, onde a tradição social-democrata original não vigorou e onde o comunismo se confundia com o anti-imperialismo. Por sinal, não é de se admirar que em todos os textos de MAG publicados pela FPA, a China não mereça a devida atenção. Mas, justiça seja feita, MAG não estava sozinho isso: especialmente na década dos noventa, 9 em cada 10 “especialistas” cometeram este mesmo erro.
Isto posto, é preciso reconhecer que daquela chave de análise, mesmo com as limitações citadas e outras, MAG extraiu uma orientação laica, ecumênica e fortemente latino-americanista para a política de relações internacionais do PT.
E foi com esta abordagem que Marco Aurélio integrou aquele já citado grupo restrito de quadros – composto também por Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães, Lula e Dilma Rousseff, entre outros e outras – que, sem pensar o mesmo a respeito de inúmeros temas, foram coletivamente responsáveis por formular a política externa do governo brasileiro entre 2003 e 2016. Neste coletivo mais ou menos informal, MAG era a principal expressão do que podemos chamar de internacionalismo petista.
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Passemos agora ao que MAG diz em outro texto, intitulado “Pensar a terceira geração da esquerda” e corresponde a uma palestra feita por ele no seminário internacional “História e perspectivas da esquerda”, realizado na USP entre os dias 13 e 15 de agosto de 2003. Portanto, já durante o primeiro mandato de Lula.
Diz que “entre 1989 e os dias de hoje assistimos fundamentalmente a duas grandes transformações no que diz respeito aos paradigmas que dominaram a esquerda no século XX. A primeira transformação foi, sem dúvida nenhuma, a crise do modelo comunista, que teve como acontecimentos emblemáticos a queda do muro de Berlim, de um lado, e a autodissolução da União Soviética, de outro, arrastando com ela quase todos os partidos que, de alguma maneira, se vinculavam a estes paradigmas, mesmo aqueles que tentavam fazer um aggiornamento de suas posições. Por outro lado, também assistimos a uma crise, talvez não tão dramática, mas nem por isso menos importante, dos paradigmas social-democratas, não tanto pelas derrotas que sofreram em algumas eleições, talvez compensadas por vitórias em outras, mas muito mais pela desconfiguração do ideário social-democrata, em certa medida explicitada aqui nas três intervenções que me antecederam”.
Notem que 13 anos depois do artigo publicado na revista Teoria e Debate, a “chave de leitura” continua a mesma: o dilema socialdemocracia versus comunismo.
No mesmo texto, MAG pergunta (em 2003):
“É possível uma experiência de esquerda na periferia do capitalismo, como é o caso do Brasil e de outros países? Essa experiência está condenada de antemão a ser inviabilizada e um governo de esquerda que se constituir vai terminar como terminou o governo Allende ou como terminaram outros governos de esquerda na América Latina? Ou ele vai necessariamente trair o seu ideário? Não vou dar a resposta. Sem dúvida tenho convicções muito profundas sobre qual é a resposta, mas quero dizer que esse é um debate político e, mais do que isso, é um debate intelectual. Há intelectuais brasileiros que defendem a inviabilidade de um projeto de esquerda efetivo, radical, na periferia do capitalismo”.
E conclui sua intervenção dizendo que a “na América do Sul, ou na América Latina, temos uma história que, de certa forma, manteve conexão com a história das grandes alternativas do socialismo no mundo. No entanto, detecto, e escrevi sobre isso, que vivemos uma espécie de terceira onda, uma terceira geração de esquerda que, em certa medida, contém alguns elementos estruturantes que eu chamaria de pós-comunistas e pós-social-democratas. O grande problema é que essa novidade, que é uma novidade social, uma novidade política, não necessariamente se expressou em termos teóricos, não necessariamente foi capaz de produzir efetivamente uma referência teórica”.
MAG termina sua exposição de 2003 repetindo, de certa forma, o que já há havia dito em 1990: existiria uma novidade política, mesmo que potencial, mas que ainda não havia sido capaz de “produzir efetivamente uma referência teórica”.
Que esta “referência teórica” faz falta, estamos totalmente de acordo. Mas por qual motivo fazia falta em 1990, continuou assim em 2003 e – acrescento – segue fazendo falta em 2021?
Por qual motivo os defensores daquela “chave de leitura” não conseguiram produzir a “referência teórica” reivindicada pelo próprio Marco Aurélio?
Qualquer um que tenha convivido com MAG ou lido seus textos sabe muito bem que não foi por falta de capacidade. Nem dele, nem da coorte de intelectuais que tinham MAG como “irmão em armas”.
Claro, pode-se argumentar que a coruja de Minerva alça voo no “cair do crepúsculo”; mas já se passaram 7 anos do impeachment, Lula foi eleito nas presidenciais de 2023, mas até agora os partidários daquela visão defendida por MAG não produziram a tal “referência teórica” a qual ele se referia.
Por quê?
Uma possível explicação (ainda que indireta) está contida em um dos textos do Dossiê publicado pela Teoria e Debate em julho de 2021, mais precisamente no texto do professor André Singer.
Neste texto, intitulado “Marco Aurélio, lulismo e sonho rooseveltiano”, André Singer relata ter sabido de MAG como “parte de um grupo de companheiros e companheiras que haviam tomado uma orientação autonomista na França”.
Depois relata três conversas tidas por ele, Singer, com Marco Aurélio:
“A primeira conversa, creio, ocorreu na sede do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, perto da Praça da Sé, no primeiro semestre de 2002. Falávamos sobre o programa do PT para o pleito, cuja confecção ele coordenou inúmeras vezes. No meio de um raciocínio, virou-se para mim e disse: “Escuta, tem um aspecto que você precisa entender. Existe o petismo, mas hoje em dia existe uma outra coisa, independente, que é o lulismo” (…) Não se tratava de aumentar ou diminuir o partido, mas de dar a César o que é de César (passe o trocadilho)”.
“(…) foi, talvez, no início do mandato que ocorreu a segunda conversa chave. Nela, o tema eram os planos referentes ao Nordeste. É provável que eu buscasse encaixar o assunto nos esquemas da luta de classes, quando Marco, de novo, surgiu com o inesperado. “Olha, existe uma componente rooseveltiana na concepção deste governo”.
“(…) Tal como fora surpreendido pela existência do lulismo, nunca tinha me passado pela cabeça que o modelo reformista em curso pudesse passar não pela experiência socialista europeia, mas pela democrata norte-americana. Com o tempo percebi que ele estava certo. Uma noção de capitalismo popular, com raízes nos EUA, explicaria diversas iniciativas governamentais como, por exemplo, a do crédito consignado”.
“Na última vez que nos vimos, penso que seis meses antes de sua morte, outra vez o cenário era o do Diretório Nacional do PT no centro da cidade. (….) Estava claro, para mim, e creio que para ele, que o sonho rooseveltiano se quebrara. Já tínhamos entrado nesta conjuntura regressiva que, quatro anos depois, ainda nos envolve. Ao me despedir, não sabia que precisaríamos sair dela sem as ideias e o humor do MAG”.
O relato de Singer é absolutamente genial, pois de maneira totalmente imprevista ele descortina os descaminhos da teoria e prática baseada na “chave de leitura” construída por MAG desde seu regresso do exílio.
Focado em superar as tradições comunista e socialdemocrata, MAG foi sendo arrastado (e, mais do que isso, ajudando a construir) desdobramentos imprevistos do ponto de vista daquele suposto dilema socialdemocracia/comunismo. Alguns destes desdobramentos aparecem no relato de Singer: do “autonomismo” ao lulismo, do “socialismo democrático” ao “sonho rooseveltiano”, da derrota de 1964 à derrota de 2016.
Dizendo de outro modo: MAG fez parte de uma geração que fez a crítica da política predominante na esquerda hegemônica no período pré1964. Quatro décadas depois, parte daquela geração se viu diante de dilemas para os quais apresentou soluções teoricamente aparentadas com as posições daquela mesma esquerda hegemônica no pré1964.
A esse respeito, vale lembro de MAG comentando que a política do PC chinês nos anos 2000 lembrava a política do PC soviético nos anos 1950, época em que o PC chinês proferia as maiores acusações contra o PC soviético. MAG tinha razão no comentário; mas em certa medida o mesmo poderia ser dito acerca de algumas posições existentes no PT acerca das posições existentes no PCB pré 64.
Essas analogias não constituem nenhum mistério para quem acompanhou a trajetória de parte da esquerda chilena, por exemplo aqueles que integraram a esquerda do PS chileno e o MIR na época do governo da Unidade Popular (1970-1973). Muitos dos que criticavam Allende e defendiam “avanzar sem transar” (o que em português é algo do tipo avançar sem conciliar), tornaram-se defensores acérrimos das supostas virtudes da Concertación.
Aliás, como lembrou outro dos alunos de MAG, “o governo Lula é muito herdeiro de uma certa leitura dos “erros chilenos” e da necessidade vital de fazer diferente, em geral numa chave fortemente não confrontacionista e de alianças amplíssimas”. E o que ocorreu em 2013 e o golpe de 2016 “desnorteiam muito essa visão”.
Ou, para citar um ex-ministro do governo Lula, em palestra feita no campus de Santo André da UFABC, “achávamos que se fizéssemos um governo moderado, isso estimularia o outro lado a também ser moderado”. Como sabemos, não foi exatamente isto o que aconteceu.
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O terceiro texto que vamos comentar – texto inédito até sua publicação no já citado Dossiê – é o roteiro utilizado por Marco Aurélio Garcia em sua participação no Colóquio Internacional “Claude Lefort: a invenção democrática hoje”, na Universidade de São Paulo, em 14 de outubro de 2015.
Segundo MAG:
“Todos os segmentos da esquerda brasileira – da tradicional até os grupos armados – haviam sofrido uma terrível derrota política e militar durante os anos 1970. Essa derrota era sobredeterminada pela crise dos paradigmas ortodoxos que haviam, por décadas, informado as esquerdas no Brasil, na América Latina e no mundo. Antes mesmo da queda do Muro de Berlim (em 1989) e da autodissolução da União Soviética (em 1991) a crise polonesa e a emergência do sindicato Solidariedade, apontavam internacionalmente para a possibilidade (ou, ao menos, para a necessidade) de uma alternativa pós-comunista, que seria também pós-social-democrata, tendo em vista os descaminhos da socialdemocracia europeia naquele momento”.
Como se vê, 25 anos depois do primeiro texto citado, a tese básica segue a mesma.
No texto de 2015, fala-se de projetos de mudança, de novas políticas econômicas e de uma “revolução democrática”. Critica-se o pragmatismo. Mas não se fala do socialismo.
Lembramos que em 1990 a questão se colocava assim: “para construir seu projeto de transformação socialista do Brasil”, o PT precisaria “escapar do dilema bolchevismo x social-democracia”, evitando tanto a “defesa intransigente da ortodoxia” quanto o “abandono da noção de socialismo em proveito de um (neo)liberalismo que nem mesmo os (neo)liberais praticam”.
Neste texto de 2015, não fica clara a relação entre o projeto socialista e a alternativa realmente existente, que veio sendo construída desde 1990 até 2015.
Claro que não se deve exagerar neste argumento, pois há outros textos em que a questão é mencionada (por exemplo, num texto de 2005 sobre os 25 anos do Partido, quando ele fala da “possibilidade de uma alternativa nacional, democrática, popular e socialista para o Brasil”).
Ressaltamos, neste texto de 2015, a maneira como MAG critica os que apresentam os processos da região como sendo algo que não são. Vejamos o trecho:
“A maioria dos processos democráticos em curso na América do Sul carece de uma narrativa, aí incluído o que ocorre no Brasil”.
“No que vem ocorrendo na América do Sul nesta última década, onde há claros indícios de um processo de revolução democrática em curso, há, o risco de revestir essas transformações de um conteúdo que não lhe é próprio e até mesmo oposto”.
“Um discurso fundado em experiências revolucionárias passadas e fracassadas não será capaz de ocupar o vazio que a ausência de uma narrativa original sobre o processo de invenção democrática em curso deixa.
E é nesse ponto e dessa forma que o tema do socialismo aparece: como desdobramento da democracia.
“Uma das contribuições que Lefort nos deixou foi a de associar o destino do socialismo às perspectivas da revolução democrática. Por isso ele abre sua reflexão sobre a experiência soviética – no La Complication – com a frase aparentemente paradoxal: “O comunismo pertence ao passado; por outro lado, a questão do comunismo permanece no coração de nosso tempo.”
O comunismo permanece no coração. Mas a “equação” que conduz da revolução democrática ao socialismo não deixa de ser uma atualização customizada da fórmula socialdemocrata citada por MAG no texto de 1990, a saber: “O socialismo passava a ser o próprio movimento pelas reformas”. A fórmula reformista é radicalizada no último texto de MAG (de 2017).
MAG termina o texto de 2015 conclamando a democracia, não o socialismo. É sintomático que uma tradição teórica que insistiu tanto em não dissociar socialismo e democracia, termine inúmeras vezes cometendo – com sinais trocados – a justamente criticada atitude daqueles que diziam que primeiro o socialismo, depois a democracia.
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Já comentamos que no terreno da política geral do PT e do governo, a influência foi relativamente menor.
Isso fica claro no balanço que MAG fez em 2005, no aniversário de 25 anos do Partido, seja no que diz acerca do “interregno do governo Itamar, que o PT equivocadamente decidiu não integrar”, seja quando ele diz que “o Plano Real e o governo FHC não eram um plano/governo “de direita”, mas se transformaram na alternativa “da direita”.
Por outro lado, nesse mesmo texto MAG diz que o “discurso sobre a política econômica apresentou dois graves problemas. Primeiro, coincide com o dos conservadores, quando celebra unilateralmente alguns aspectos – metas de inflação, superávit primário, risco país – e silencia ou é parcimonioso sobre questões-chave como a forte diminuição de nossa vulnerabilidade externa. Segundo, não tem sido capaz de explicitar um projeto estratégico de desenvolvimento que aponte mais além do nacional-desenvolvimentismo e do receituário do Consenso de Washington”.
Quem teve a oportunidade de ver MAG defendendo esta abordagem, pode ter concluído que nossa prática seria melhor do que nossa teoria; logo, a tarefa seria mudar a “narrativa”. Deixemos para outra ocasião polemizar com esta abordagem “narrativa”, que virou moda em alguns meios; mas no terreno fático, o discurso sobre a política econômica não era apenas um discurso, correspondia a hegemonia de um setor – liderado por Palocci – que deu continuidade à parte das políticas adotadas no período FHC.
MAG adotava – nos textos e nas aparições públicas – uma atitude crítica, mas muito cautelosa, o que é compreensível dado seu papel no governo e sua opção na “luta interna”. Resta saber se esta cautela – politicamente compreensível – afetou a qualidade de sua análise.
Por estes e outros motivos, é preciso saber como lidar com a análise histórica e com o debate teórico. Discutir a influência efetiva de MAG e de suas propostas em determinados acontecimentos é diferente de interpretar determinados acontecimentos à luz das opções programáticas e estratégicas propostas por MAG.
Para exemplificar: uma coisa é analisar as condições históricas em que uma ditadura revolucionária se impõe; outra coisa é formular uma teoria acerca da ditadura do proletariado. Quaisquer que sejam as posições que se tenha, são âmbitos diferentes.
Neste sentido, mesmo que possamos concluir que a posição de MAG foi, em um caso concreto, a “politicamente correta”, isto não se estende necessariamente à suas premissas teóricas; e vice-versa: uma derrota não invalida necessariamente as premissas dos derrotados.
Os três livros publicados pela FPA contribuem para que se possa fazer esta discussão, embora de maneira insuficiente, primeiro porque muitos dos textos são fortemente marcados pela retórica oficial, segundo porque constituem apenas pequena parte dos textos de MAG. É líquido e certo que seus arquivos revelarão muita coisa interessante.
Feitas estas ressalvas, os textos publicados no livro A opção Sul-americana confirmam os pontos fortes e os pontos fracos do programa e da estratégia defendidas por Marco Aurélio.
Quanto aos pontos fortes, me concentro naquilo que é citado no artigo de Maria Regina Soares de Lima no Dossiê: “a heterogeneidade política e ideológica da América do Sul”; “a unidade regional constitui imperativo estratégico”; “a tarefa da política externa altiva e ativa é impedir que a heterogeneidade se transforme em divisão e polarização, condições que nos colocaria em extrema fragilidade diante da ameaça de intervenção externa”; “escrevendo em 2005, divergia das raquíticas análises correntes que identificavam uma esquerda populista, do mal, e uma socialdemocrata, do bem”.
Já os pontos fracos – que decorrem direta e indiretamente da “chave de leitura” já citada – dizem respeito a ausência de uma reflexão de fundo: 1/ sobre as tendências do capitalismo e do imperialismo; 2/ sobre as possibilidades do desenvolvimento capitalista na região; 3/sobre a China.
No caso da China, uma explicação parece ser a seguinte: a sobrevivência e fortalecimento do PC chinês mantinha algum nível de contradição com a opinião de MAG sobre o esgotamento da tradição comunista.
Quanto aos outros dois pontos, na prática se caminhou no sentido de superestimar as possibilidades de uma “convivência pacífica” com os Estados Unidos e, também, as possibilidades de desenvolver um “capitalismo de novo tipo” na região.
Para exemplificar, citamos a seguir alguns trechos extraídos dos textos publicados no livro supracitado:
No texto “O melancólico fim de século da política externa”:
“O governo Lula definiu desde 2003 seus objetivos fundamentais: a retomada do crescimento econômico, capaz de reverter a tendência de décadas de recessão ou crescimento medíocre; a compatibilização desse crescimento com um processo de distribuição de renda, alicerçado na construção de um mercado de bens de consumo de massas, por sua vez ancorado na expansão do emprego e dos salários, na oferta ampliada de crédito e nas políticas de transferência de renda; a conquista do equilíbrio macroeconômico, que se encontrava ameaçado em 2002, e a redução da vulnerabilidade externa, em grande medida lograda pela extraordinária ampliação e diversificação do comércio exterior; o aprofundamento da democracia e a inserção internacional soberana do país. A todos esses elementos se somava a decisão de dar maior consistência à integração da América do Sul”.
Note-se que o tema da (re)industrialização não comparece nesta síntese; e a redução a vulnerabilidade externa seria “em grande medida” lograda pela via do comércio. Comércio de quê? Citemos novamente MAG:
“Essa opção decorre da percepção brasileira acerca das potencialidades da América do Sul no mundo de hoje, mas, sobretudo, no de amanhã. O continente tem o maior e mais diversificado potencial energético do planeta – se levarmos em conta suas reservas hidrelétricas, de gás e de petróleo, além de sua capacidade de produção de biocombustíveis. A América do Sul possui a maior reserva de água doce do mundo. Sua agricultura ocupa lugar de destaque, não só pela extensão e fertilidade de suas terras como pelos avanços científicos e tecnológicos alcançados nos últimos anos. Suas jazidas minerais são enormes e diversas. Para um mundo que se mostra (e se mostrará mais ainda) ávido de energia, água, alimentos e minérios, os fatores antes alinhados mostram quão relevante pode ser a contribuição da região para o desenvolvimento da humanidade. Some-se a tudo isso a rica biodiversidade do continente, o tamanho de sua população, a extensão e a diversidade de seu território e clima”.
E só depois deste “desfile” primário-exportador vem o complemento:
“A América do Sul tem um parque industrial de porte, ainda que concentrado em poucos países. Abriga universidades e centros de pesquisa científica e tecnológica de alta qualidade. Possui uma exuberante cultura”.
Como foi ressaltado anteriormente, o texto glosado é em certa medida “oficial”. Mas o que está escrito está escrito. E não admira que, por este caminho, MAG logo se veja na obrigação de defender o “populismo” contra as críticas de direita.
A esse respeito, ele diz assim:
“Muitos analistas não hesitam em caracterizar o fenômeno como “renascimento do nacionalismo-populista” – qualificado como “arcaísmo”, posto que remeteria às problemáticas dos anos 1950 na região”.
“A denúncia do “nacionalismo populista” como “arcaísmo” é ela mesma “arcaica”, política e conceitualmente. Reflete, em versão atualizada, os mesmos preconceitos que marcaram a avaliação de fenômenos como o peronismo na Argentina, ao qual se procurou, muitas vezes, colar a etiqueta “fascista”.
Noutro texto, intitulado “Dez anos de política externa” (2003), MAG chega a dizer o seguinte:
“É importante destacar, entretanto, que essa vocação para celeiro do mundo da região não depende exclusivamente de fatores naturais ou mesmo de uma força de trabalho barata, como no velho modelo agroexportador. A agricultura da região – em particular a brasileira – ganhou altos níveis de produtividade em função da pesquisa científica e tecnológica, da qual uma entidade como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) é paradigmática. A América do Sul possui grandes florestas e uma opulenta (e inexplorada) biodiversidade, além de um rico e diversificado acervo mineral”.
“Nos últimos anos, conflitos em torno de impactos ambientais e/ou sociais de grandes projetos energéticos, de logística ou mineiros, ganharam visibilidade e testemunharam o avanço da democracia. Reduziu-se o espaço para ações predatórias contra a natureza ou em detrimento de povos originários”.
“O parque industrial da região é relevante, a despeito de problemas conjunturais. Materializando-se a preocupação de muitos governos da América do Sul de levar adiante amplos programas de formação de mão de obra e de inovação tecnológica, a indústria poderá atingir um novo patamar, comparável ao das economias emergentes mais competitivas”.
“Um dado demográfico é essencial: 400 milhões de sul-americanos formam parte do mercado de consumo, beneficiados em grande medida por políticas de inclusão social. A relevância desse mercado de bens de consumo de massa pôde ser constatada quando da irrupção da crise econômica mundial a partir de 2008. O retraimento dos fluxos comerciais internacionais foi compensado pelo vigor do mercado interno”.
Aqui vale um parêntesis: em palestra feita há muitos anos, um chanceler de outro país, pessoa que cumpriu um belíssimo papel em Mar del Plata no enterro da ALCA, disse que a experiência dos governos progressistas da região havia demostrado que certas ideias dos anos 1950 – por exemplo, a crítica a troca desigual, a maldição do primário-exportador etc. – não teriam mais a mesma vigência.
Pelo contrário, pensamos que a experiência dos chamados governos progressistas e de esquerda demonstrou o contrário: que o tipo de desenvolvimento possível com base numa economia primário exportadora será sempre limitado. E o “vigor do mercado interno” nem de longe dá conta do problema – que depende um imenso investimento estatal, concentrado em bens duráveis de consumo público (ferrovias, hidrovias, reconstrução das cidades etc.).
Voltando ao texto de MAG de 2013: nele fica explícito o quanto se subestimou a crise de 2008 e seus desdobramentos. Lá se pode ler o seguinte:
“Essa crise teve consequências muito distintas daquela que abalou o mundo em 1929, quando o continente enfrentou grave depressão econômica e social e aguda instabilidade política. A última década tem mostrado a América do Sul como uma região estável, onde se fortalece a democracia. Com exceção do episódio da destituição arbitrária de Fernando Lugo no Paraguai – pronta e unanimemente condenada pelo Mercosul e pela Unasul –, os presidentes de todos os demais países da região foram eleitos em pleitos limpos e com forte participação popular”.
Parte da subestimação tinha raízes na análise econômica, parte tinha raízes na análise política. E esta última incluía subestimar de um lado o imperialismo e, de outro subestimar a direita brasileira, em particular as forças armadas.
Sobre a subestimação do imperialismo, destacamos o seguinte trecho:
“A transformação de um até então anódino G20 financeiro em uma instância de maior peso, revelou que as grandes potências passavam a reconhecer – ainda que sem tirar todas as consequências – não ser mais possível enfrentar o grave momento que vivia a humanidade com o mesmo grupo de países, sobretudo, porque eles tinham responsabilidade central na catástrofe que se desenhava”.
Quanto às forças armadas, infelizmente a política externa deu sua dose de contribuição ao que ocorreria a partir de 2016, ao não enxergar certos efeitos colaterais da participação na MINUSTAH. A esse respeito, MAG diz o seguinte:
“Quando o Brasil integra e comanda a Minustah, no Haiti, ao abrigo das Nações Unidas e do Direito Internacional, ele está não apenas participando de uma iniciativa multilateral, mas dando sentido próprio a esse tipo de missão, distinto das intervenções internacionais passadas em países demandantes de estabilização”.
Em 2014, no texto “As novas faces da integração regional”, MAG diz o seguinte:
“Todos os elementos expostos até aqui esboçam uma explicação de por que a região – apesar de viver os problemas da crise de 2008 – pôde resistir, melhor que outras partes do mundo, às turbulências externas, ao mesmo tempo que atraía um significativo número de investimentos internacionais e mantinha suas conquistas sociais, necessárias para reduzir as desmesuradas iniquidades ainda latentes”.
“A realidade é que hoje a América Latina e o Caribe têm pouca importância na política externa dos EUA, como ocorrera em outras décadas. Entretanto, já em algumas ocasiões os EUA voltaram seus olhos, em termos diplomáticos, para a América Latina, no momento em que sentiram sua hegemonia ameaçada na região. Foi assim durante a Segunda Guerra Mundial, quando formularam a política de “boa vizinhança. (…) Dito isso, a relação com os EUA tem que se assentar sobre novas bases. Não se pode persistir em um antiamericanismo – que tem justificativas prescritas em outros tempos – nem em um alinhamento incondicional, também obsoleto”.
Depois do impeachment, num texto de 2017, publicado numa coletânea intitulada Uma política externa altiva e ativa, MAG diz o seguinte:
“São muitos os sinais de involução da situação sul-americana: a prolongada crise venezuelana, as pressões da direita no Equador, a derrota de Evo Morales no plebiscito boliviano, a vitória de Macri na Argentina, as dificuldades do governo de Michelle Bachelet no Chile, a exclusão da esquerda no segundo turno da eleição presidencial peruana, a derrota da proposta de paz no referendo da Colômbia, para citar os exemplos mais relevantes.”
Mesmo assim MAG afirma que a política externa brasileira, política “que alguns tentaram qualificar depreciativamente como “terceiro mundista” – não nos tenha afastado das grandes potências. Se assim fosse, como explicar as boas relações que mantivemos com os Estados Unidos, a despeito de inevitáveis contenciosos, ou o fato de haver sido o Brasil considerado como “aliado estratégico” da União Europeia, logo após a China? Como explicar, igualmente, nossa presença como convidado às reuniões do G8 e, posteriormente, nossa presença destacada nas negociações da Rodada Doha (da OMC) e no G20 financeiro, que teve destacado papel para evitar que a crise de 2008 se transformasse rapidamente em catástrofe?”
MAG conclui seu texto dizendo que “será fundamental avançar (nacional e regionalmente) na (auto)crítica desses 15 anos de emergência de movimentos sociais, de transformações governamentais e de surgimento de uma nova cultura política. Não há boas políticas sem um forte debate de ideias. Constrangidos pelos desafios do exercício das tarefas governamentais, fomos frequentemente negligentes em realizar uma reflexão crítica sobre a herança passada e sobre os desafios futuros. Essa reflexão não é condição suficiente, mas necessária, para nossa ação. (…) É fundamental entender que está em curso uma grande mudança geopolítica no mundo. Não só entender, mas revertê-la”.
O que talvez seja o último texto publicado em vida por MAG saiu no LMD, em junho de 2017 e se intitula exatamente “Retomar o ciclo progressista”:
“não era o socialismo que estava em jogo. As transições colocavam na ordem do dia reivindicações de democracia política, econômica e social no marco do capitalismo”.
“Para tanto, em vez de uma hoje improvável revolução permanente, ou de uma recaída social liberal, abre-se o espaço para a invenção de um processo permanente de reformas, com as quais o próprio capitalismo realmente existente tenha dificuldades de conviver e, por essa razão, possa ser desestabilizado, abrindo espaço para mudanças importantes”.
“Tendo claro que a revolução dos anos 1960 não mais estava na ordem do dia, os governos e partidos progressistas seguiram o caminho de reformas inclusivas. Mas não foram capazes, na maioria dos casos, de impulsionar um reformismo forte, para retomar uma expressão cara à esquerda italiana, capaz de dar perenidade e sustentabilidade política às importantes transformações em curso”.
“O mal não está em fazer reformas e deixar de “fazer a revolução” ou por ela esperar uma eternidade, limitando-se ao exercício crítico do capitalismo ou dos desvios das esquerdas. O problema está em não inserir um processo de reformas em uma visão de longo prazo de mudança social, política e cultural, capaz de mobilizar uma sociedade que não pode ser reduzida ao papel de espectador. É a ligação constante de governos e partidos com a sociedade que impede uma leitura individualista e conservadora das transformações em curso, como tem aparecido em muitas pesquisas”.
A lógica embutida neste raciocínio, feito em 2017, pode ser melhor compreendida a partir do que está num texto de 1997, sobre o Manifesto Comunista. Citemos:
“Rompendo com o pensamento único, este mundo do fim de século aparece não só como um campo de constrangimentos econômicos, sociais e políticos, mas também como um espaço de enormes oportunidades para o progresso e bem-estar humanos, que não se realizarão nos marcos de uma sociedade capitalista, ainda que reformada”.
“Abre-se, assim, claramente a problemática de um mundo pós-capitalista. Mas, ao invés de construir a utopia de uma sociedade alternativa que os progressos materiais de hoje podem viabilizar facilmente, melhor é concentrar a reflexão sobre os meios de enfrentar a barbárie capitalista na sua versão neoliberal e de construir os instrumentos de sua superação”.
Porque seria “melhor” concentrar esforços contra a “versão neoliberal”?
Uma possível resposta está em um texto posterior, de 2001, onde afirma-se o seguinte:
“Um programa socialista para o século XXI, diferentemente de outros no passado, não parte de uma meta construída a partir da qual se desenhará um caminho para atingi-la. Não se trata de um movimento teleológico. Sua única premissa: o capitalismo não é o fim da história e, portanto, coloca-se no horizonte, ainda que em forma imprecisa, uma sociedade pós-capitalista. A diferença está em que o processo que conduz a essa sociedade é tão importante quanto o resultado. Este não pode ser separado daquele. Movimento (meios) e fins se articulam mutuamente. Vou, então, alinhar alguns temas que me parecem importantes para essa agenda do socialismo no século XXI”.
Os temas abordados por MAG neste texto de 2001 são: INTERNACIONALISMO E NAÇÃO; PROPRIEDADE, MERCADO, PLANEJAMENTO, REGULAÇÃO; A IGUALDADE SOCIAL; O MUNDO DO TRABALHO; NOVOS PARADIGMAS DE DESENVOLVIMENTO; A SOCIALIZAÇÃO DA POLÍTICA; EXPLORAÇÃO E OPRESSÃO; SOCIALISMO, CULTURA E CONHECIMENTO; SUJEITOS SOCIAIS; PARTIDO E MOVIMENTO.
Mas para os fins que estamos debatendo aqui, o tema mais importante é intitulado “O processo”, onde MAG diz o seguinte:
“A luta pelo socialismo envolve em muitos países, e este é o caso brasileiro, uma curiosa relação com o capitalismo realmente existente no país. Um programa de transformações centrado em reformas econômicas de cunho fortemente redistributivista, que exija uma reorientação importante do modelo de desenvolvimento, associadas a um processo de radicalização da democracia e de defesa da soberania nacional com a correspondente designação de um novo lugar para o Brasil no mundo, pode ter pouco a ver com o socialismo e ser até entendido como um projeto de fortalecimento do capitalismo brasileiro. Essas reformas, consolidando abstratamente o capitalismo no Brasil, desestabilizam-no concretamente, sempre e quando as mudanças forem resultado de intensa mobilização social”.
“Abre-se, então, um processo continuado de transformações em que as conquistas parciais preparam novas conquistas e sinalizam que as possibilidades de reformas profundas deixam o terreno das possibilidades para transformar-se em viabilidades”.
“Para tanto, e especialmente no plano das transformações internacionais, deve-se estabelecer uma dialética entre a consciência dos constrangimentos e a vontade política de vencê-los. Política é ação, e por maiores que sejam suas exigências de racionalidade há uma margem para decisão e ação transformadoras da vontade humana”.
Como se pode ver pelos textos acima, as já apontadas limitações dos textos publicados no livro A opção Sul-americana devem ser lidas em diálogo com os textos que integram o livro Construir o amanhã. Reflexões sobre a esquerda (1983-2017).
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Para concluir, destacamos o texto apresentado por MAG em um encontro das fundações Maurício Grabois (PCdoB), Perseu Abramo (PT) e Leonel Brizola – Alberto Pasqualini (PDT). O encontro ocorreu no dia 14 de julho de 2017, portanto seis dias antes da partida de MAG.
O texto se intitula “CONSTRUIR O AMANHÔ. O texto tem muitas qualidades, mas o que me chamou a atenção é o fato de que o “amanhã” não inclui nenhuma referência, nem mesmo ritual, ao tema do socialismo.
Isto é uma lacuna espantosa, entre outros motivos porque MAG foi um socialista convicto e militante até o último segundo de sua vida. E o referido texto foi lido em um espaço de fundações de partidos que, em maior ou menor medida, tem relação com a tradição socialista. Portanto, a ausência de qualquer referência à “palavra maldita” não é um detalhe menor.
Da leitura do parágrafo a seguir, fica claro tratar-se do efeito colateral de uma linha política, que nos dias que correm convencionou-se chamar de “frente ampla”:
“As forças progressistas aqui reunidas sabem que têm um caminho complexo e árduo a percorrer. Que exige derrotar os atuais donos do poder e que supõe entender criticamente as razões da grande derrota que sofremos. Mas que depende, também, e essencialmente, de nossa capacidade de formar uma grande coalizão social e política capaz de construir um novo amanhã para o Brasil. Essa coalizão tem de ser mais ampla que o espaço das esquerdas. Aos setores progressistas, representados por partidos de esquerda e movimentos sociais hoje agrupados em Frentes de intervenção política, compete conduzir um movimento, que se faz cada vez maior e mais combativo. Compete fundamentalmente atrair amplos setores democráticos em todas as esferas da sociedade brasileira, inclusive aqueles que, equivocados, participaram da aventura golpista”.
A ausência de referência explicita ao socialismo enquanto parte integrante do “amanhã” a ser construído tem implicações práticas sobre a potência de nossa ação, aqui e agora. Não se trata apenas da discussão programática, tática e estratégica. Há um elemento mais de fundo: uma das causas da derrota sofrida em 2016 é a ausência de uma permanente batalha ideológica em favor de uma cultura de massas de novo tipo. E é impossível travar esta batalha abrindo mão da defesa explícita do socialismo, pois é esta defesa que “dá liga” e “sentido” ao conjunto da obra. A não ser, é claro, que se aceite que o movimento (cego) é tudo, o fim nada.
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MAG, depois do golpe de 2016, estava vez mais preocupado, não apenas com a situação em si mesma, mas também com a nossa dificuldade de compreender o que estava ocorrendo e o que poderia vir a ocorrer no mundo, na região e no Brasil.
Aliás, uma de suas últimas participações destacadas na vida interna do PT foi integrar a comissão de teses do 6º Congresso Nacional do PT (junho de 2017), composta por outras vinte pessoas. Naquela ocasião, MAG contribuiu ativamente para a tentativa de uma reformulação global da estratégia e do funcionamento partidários, tentativa que terminou frustrada e com ele fora do Diretório Nacional.
Seja como for, nos próximos anos e décadas muitos “cientistas” políticos, historiadores e especialistas em política de relações internacionais escreverão a respeito de sua vida e obra.
Cabe estudar não apenas a “vida”, mas também a obra intelectual de MAG. Isto é particularmente verdadeiro para os “internacionalistas, especialmente para os que estudam a política externa no período dos governos Lula e Dilma; mas também para os que estudam a América Latina e Caribe entre 1989 e 2016. Esperamos que os cursos de graduação e pós em RRII incluam (ou reforcem a presença) de MAG na sua bibliografia obrigatória. A Universidade ganhará com isto.
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Para os que tiveram a chance de conhecer e conviver com Marco Aurélio – e também, em alguns casos, a chance de disputar duramente contra várias de suas posições – fica a lembrança e saudade carinhosa por alguém divertido, culto, ateu irredutível, um camarada que não tinha vergonha de ser gauche na vida. Faz e seguirá fazendo muita falta.
Centro Sérgio Buarque de Holanda relembra Marco Aurélio Garcia
Julho de 2022
Especial 80 anos de Marco Aurélio Garcia
Revista Teoria & Debate, nº 209, jun/2021
Entrevista com Marco Aurélio Garcia
Os anos de formação: 1941 -1964
Depoimento concedido a Alexandre Fortes (18/11/2009) do Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho (LEHMT)
Ausência e presença
Texto de Marco Aurélio Garcia sobre Beth Lobo
Revista Teoria e Debate, nº 14, abr/1991