Igor Fuser
Texto publicado originalmente na Revista de la Red de Intercátedras de Historia de América Latina Contemporánea. Año 5, N° 8, Córdoba, Junio-Noviembre 2018. ISSN 2250-7264
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Introdução
Quatro anos antes que a presidenta brasileira Dilma Rousseff fosse derrubada em um golpe jurídico-parlamentar, Valter Pomar, líder de uma das correntes políticas do Partido dos Trabalhadores (PT), já alertava sobre a fragilidade do chamado “ciclo progressista” na América Latina, ao afirmar que os diferentes governos de esquerda estabelecidos na região a partir da virada do milênio deviam sua existência a uma “janela de oportunidade” no sistema capitalista internacional (Pomar, 2012: 57-58). Ele usou essa expressão para designar uma coincidência muito especial de fatores positivos sobre os quais os atores políticos do campo democrático-popular latino-americano não tinham qualquer capacidade de influir. Entre elas, o declínio relativo do poderio global estadunidense, o surgimento de novas potências, as flutuações nos preços das matérias-primas, a evolução da crise econômica internacional. Esse cenário deixava o futuro desses governos na dependência de um desafio urgente: ou eles aproveitavam a conjuntura política e econômica favorável para se consolidar politicamente e levar adiante mudanças profundas, ou a “janela” se fecharia antes que fosse possível estabelecer, nos respectivos países, uma nova hegemonia que apontasse no sentido da emancipação nacional e social.
Passado mais de um ano do traumático episódio do impeachment de Dilma Rousseff, a “janela de oportunidade” a que se referia Pomar já se mostrava fechada ou, ao menos, entreaberta, num cenário em que à mudança de governo no Brasil se somavam a guinada radical à direita na Argentina (com a ascensão de Mauricio Macri à presidência), a crise institucional e o descontrole econômico na Venezuela, as dificuldades do presidente boliviano Evo Morales diante da derrota no referendo em que pleiteava o direito a uma nova reeleição, o triunfo do “não” à proposta de paz no referendo na Colômbia e o discreto, mas inegável, deslocamento do Uruguai para uma posição centrista no mapa político sul-americano.
Seria esse o “fim do ciclo progressista”, como alardeiam, eufóricos, os arautos da atual regressão conservadora? Ou é apenas uma pausa, inflexão ou recuo temporário numa tendência mais geral, de raízes profundas, rumo à emancipação dos povos sul-americanos? Emir Sader respondeu a essas indagações em tom otimista ao comentar a vitória do candidato oficialista Lenín Moreno nas eleições presidenciais do Equador, em abril de 2017, fato interpretado como “uma brecada na virada à direita em países com governos pós-neoliberais” (Sader, 2017). Segundo ele, não estamos em um final de ciclo e sim no “fim da primeira onda do ciclo anti-neoliberal, que gera agora condições de um segundo e definitivo ciclo de superação do neoliberalismo na América Latina”.
Bem diferente é a visão de Roberto Regalado, fundador do Foro de São Paulo e representante do Partido Comunista Cubano nessa articulação que reúne mais de cem partidos de esquerda e centro-esquerda latino-americanos e caribenhos. Em entrevista ao autor deste artigo, ele enfatizou que existe, sim, um ciclo político que está terminando, mas não no sentido empregado pelos analistas da direita, que veem nos acontecimentos recentes uma prova do “fim da história” e do triunfo eterno do capitalismo (Regalado, 2017). O que ocorre, segundo Regalado, é o esgotamento das possibilidades de transformação política e social profunda nos marcos das instituições vigentes. A saída, para ele, é aprofundar a agenda das mudanças e trazer para o centro do projeto político da esquerda as formas de atuação política, como a democracia direta e participativa, desenvolvidas no contexto das lutas populares dos últimos vinte anos. “Está se fechando o ciclo progressista e se abrindo o ciclo revolucionário”, afirmou, esclarecendo que se refere à busca da emancipação social pela via pacífica, e não a um retorno à insurgência armada do período entre as décadas de 1950 e 1970.
O fato é que, até meados de 2017, não apenas o Equador, mas também a Venezuela e a Bolívia prosseguiam, contra vento e maré, suas trajetórias políticas sob gestões de esquerda. A Frente Ampla permanecia no governo, ainda que vacilante, e as pesquisas indicavam perspectivas de vitória para o candidato presidencial da esquerda mexicana, Andrés Manuel López Obrador, sem falar nas chances de uma reviravolta política na Argentina e no Brasil, em prazos difíceis de prever.
É para a trajetória política, assim como para as afinidades e diferenças entre os diferentes governos que compartilham o chamado ciclo político progressista, que se volta o presente artigo.
“Duas esquerdas”: limites e realidade de uma ideia
Ainda que brevemente, é importante assinalar qual é o entendimento adotado sobre dois termos que perpassam o presente artigo. “Progressismo” é um termo constante no discurso político das esquerdas desde a primeira metade do século XX, no sentido de designar os atores políticos favoráveis ao que se costuma chamar de “transformação social”, em contraposição ao conservadorismo, geralmente associado às posições da direita (Pereira da Silva, 2015:26). Para o conceito de esquerda, a referência (já clássica) aqui utilizada tem como base a sintética definição de Norberto Bobbio, erigida sobre a dicotomia igualdade/desigualdade. Segundo o filósofo italiano, são “de esquerda” os que encaram a igualdade como um valor primordial, enquanto o campo da “direita” seria constituído pelo priorizam a desigualdade (Bobbio, 2001: 118-121).
Mas será possível agrupar experiências de governo tão díspares quanto as lideradas pelo PT no Brasil e pelo chavismo na Venezuela, pela Frente Ampla no Uruguai e pelo líder cocalero boliviano Evo Morales? A pergunta remete, inevitavelmente, à conhecida polêmicasobre a tese das “duas esquerdas”, formulada inicialmente por Jorge Castañeda (2006), segundo o qual coexistiriam dois tipos de esquerda no exercício do governo em países latino-americanos: uma moderna (moderadamente reformista, aberta às “novas realidades” do pós-Guerra Fria) e outra de caráter nacionalista, autoritária, “fechada”, herdeira dos vícios da tradição populista ao estilo Vargas e Perón. Alain Rouquié, acadêmico francês de prestígio na América Latina e diplomata a serviço do seu país, escreveu sobre o assunto em um livro recheado de maus presságios sobre o futuro da democracia na região. Nessa obra, os elogios à conduta institucional de Lula são formulados em contraste com as “tendências autoritárias” de Hugo Chávez, o grande vilão: “Já se perguntou com frequência se Chávez é um democrata. Uma pergunta vã. Ele é, antes de tudo, um militar que desconfia dos civis. Ele gosta de mandar, mais do que de governar” (Rouquié, 2011: 207).
O problema da tese das “duas esquerdas” é, em primeiro lugar, a anulação de particularidades e nuances. Fabricio Pereira da Silva (2015) destaca as diferenças entre a trajetória política da Bolívia, com um forte protagonismo dos movimentos sociais, e a experiência da Venezuela e do Equador, países onde se verifica, desde o início, uma intensa personificação do poder na figura de líderes “heroicos” (Hugo Chávez e Rafael Correa), que chegaram ao governo mais pelo carisma individual do que pelo vínculo com as organizações populares de base. O segundo problema, apontado por Pomar (2010), é que a tese das “duas esquerdas” está longe de ser desinteressada. Seus adeptos exageram as diferenças a fim de realçar os elementos apontados como negativos na esquerda que consideram “nefasta”. Buscam, desse modo, facilitar o seu isolamento internacional e a construção de uma matriz de opinião pública desfavorável.
Para Pomar, esse enfoque traz implícita a ideia – segundo ele, funcional aos interesses da direita – de que o fortalecimento de uma das esquerdas depende do enfraquecimento da outra, quando na realidade o que se verifica é quase sempre a cooperação entre os progressistas da região, sejam eles vistos como moderados ou radicais. Exemplos não faltam: a formação da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), a reprovação aos golpes de direita em Honduras e no Paraguai, o repúdio à violação das fronteiras do Equador por tropas da Colômbia no polêmico ataque a forças guerrilheiras em 2008, a solidariedade a Cuba nos seus embates diplomáticos com os Estados Unidos.
Nem por isso deixam de fazer sentido as diferentes tentativas de estabelecer, minimamente que seja, uma tipologia capaz de permitir uma interpretação objetiva do cenário latino-americano a partir de um “campo” ou “bloco” de governos que reconhecem mutuamente suas afinidades, sendo ao mesmo tempo reconhecidos como um coletivo por atores exteriores a eles. O argentino Claudio Katz classificou os governos latino-americanos em três categorias: conservadores, centro-esquerdistas e nacionalistas radicais (2008: 39). Interessa, aqui, abordar apenas o segundo e o terceiro grupo. Katz arrola os governos do Brasil (Lula), Uruguai (Tabaré Vázquez) e Argentina (Néstor Kirchner e, depois, Cristina Fernandez) no grupo dos centro-esquerdistas, e atribui aos governos da Venezuela, Bolívia e Equador o conceito de nacionalistas radicais. Enquanto os integrantes da centro-esquerda “mantém uma relação ambígua com o imperialismo e defendem os interesses gerais dos capitalistas”, os adeptos do nacionalismo radical se caracterizam por uma atitude de confronto com os EUA e com as burguesias locais. Uns mantiveram ou até aprofundaram o processo de privatização da economia, enquanto o outro grupo reestatizou grande parte dos ativos públicos transferidos ao setor privado no período neoliberal. Os governantes de centro-esquerda, segundo Katz, ”toleram as conquistas democráticas, mas obstaculizam a obtenção de reivindicações populares – as mesmas, muitas vezes, que os nacionalistas radicais se empenham em tornar realidade”.
Com critérios semelhantes, Regalado (2009: 32) aponta a Venezuela, a Bolívia e o Equador como “os três países em que se desenvolvem transformações radicais no status quo mediante processos constituintes, o que não ocorre no resto dos casos”. De fato, os países citados são aqueles em que a posse dos presidentes de esquerda foi seguida pela elaboração de novas Constituições, por meio de Assembleias Constituintes nas quais as forças progressistas recém-chegadas ao governo alcançaram ampla maioria. A ascensão política da esquerda é interpretada por Regalado nos marcos de um longo processo de lutas dos povos latino- americanos pela emancipação do domínio externo e das elites locais. Ele considera que o intervalo entre 1989 e 1992 – quando a dissolução da União Soviética é acompanhada, no continente americano, pela derrota da Revolução Sandinista na Nicarágua e pela desmobilização do movimento guerrilheiro em El Salvador – marca o fim de um período histórico iniciado com o triunfo da Revolução Cubana, em 1959, e caracterizado, por um lado, pelas tentativas de revolução armada e, pelo outro, pela implantação de ditaduras militares. Já o novo ciclo ocorre em um cenário diferente, em que a luta pela transformação social se dá, principalmente, pela via eleitoral e pelas lutas dos movimentos sociais contra o neoliberalismo.
Regalado explica as diferenças entre as opções políticas adotadas pelos governos à esquerda na América Latina pela interação entre quatro fatores, três dos quais ele denomina como positivos e outro, apontado como negativo. Os elementos positivos são: a) o acúmulo político alcançado pelas lutas populares no período anterior a 1992; b) o grau de avanço no combate às violações aos direitos humanos pelos regimes militares – o que leva à “suspensão do uso da violência aberta e grosseira como forma de dominação” (Regalado, 2009:32); e c) o grau de “consciência, organização e mobilização, social e política, registrado na luta contra o neoliberalismo, que estabelece as bases para o incremento da participação eleitoral de setores populares antes marginalizados desse exercício político”. O fator negativo mencionado por esse autor se refere à intensidade em que os “novos mecanismos supranacionais de dominação”, impostos a partir do domínio econômico e geopolítico estadunidense, afetam a soberania e a autodeterminação de cada um dos países da região. Para Regalado, portanto, a régua que permitirá avaliar as credenciais de esquerda dos governos instalados no ciclo político progressista tem como referência “a maior ou menor medida em que mantêm a política neoliberal herdada (dos governos anteriores) e priorizam as relações com o capital financeiro transnacional”. A variável mais relevante apontada por ele é saber se o país em foco possui ou não um tratado de livre-comércio com os EUA.
Com base no exame crítico das tipologias adotadas no campo da ciência política, Pereira da Silva (2015:17-24) coincide com os autores acima citados ao destacar a Venezuela, a Bolívia e o Equador como um subgrupo específico no conjunto dos governos integrantes da chamada “onda rosa”. Segundo Pereira da Silva, os governos de esquerda do atual período podem ser divididos em duas categorias: “renovadores” e “refundadores”. No primeiro grupo se destacam as seguintes características: “um grau maior de institucionalização, maior integração ao sistema político, aceitação das formas da democracia representativa na forma ‘realmente existente’ em seus países e a crítica moderada ao neoliberalismo”. No grupo dos refundadores esses traços se fazem presentes com sinal invertido. As esquerdas moderadas “pretendem ‘renovar’ a política e o governo de seus países com uma abordagem mais igualitária, estatizante e ética, mesclam políticas que integram o ideário neoliberal com propostas vagamente ‘neodesenvolvimentistas’”. Em contraste, as esquerdas mais radicais “propõem ‘refundar’ suas institucionalidades, seus sistemas partidários e o Estado como um todo, superando radicalmente o status quo vigente no momento em que chegaram ao poder, associado geralmente ao colapso dos sistemas partidários e institucionais”.
O uso do termo “refundação” pelos protagonistas dessas experiências políticas expressa o entendimento de a república foi incapaz de proporcionar uma verdadeira cidadania à maioria da população e que, portanto, permaneceu incompleta – daí a necessidade de ser simbolicamente recriada, como que a partir do zero. Não por acaso, nos três países que compõem o grupo dos “refundadores” a vitória eleitoral de candidatos presidenciais de esquerda foi antecedida pelo colapso dos projetos econômicos neoliberais e por períodos de crise institucional e forte instabilidade política. Na Venezuela, a década de 1990, que culmina com a chegada de Chávez à presidência em dezembro de 1998, transcorreu sob o impacto do Caracazo (episódio traumático em que centenas de manifestantes foram mortos pelo Exército na repressão a uma onda de protestos e tumultos) e da deterioração geral das condições de vida associada às políticas de austeridade impostas pelo Fundo Monetário Internacional. Na Bolívia, Morales foi eleito presidente, em dezembro de 2005, após um ciclo de mobilizações populares que causou a queda de dois presidentes. Também no Equador a eleição de Rafael Correa, em 2006, foi antecedida por uma década de turbulência política em que o fracasso das políticas neoliberais e os escândalos de corrupção provocaram a queda de três presidentes, acossados por levantes populares. No Brasil e no Uruguai, enquanto isso, as transições se deram de forma tranquila.
Políticas sociais, personalismo e busca do desenvolvimento
À parte todas as diferenças entre moderados/renovadores, de um lado, e refundadores/nacionalistas radicais do outro, é possível assinalar uma variedade de traços comuns em todo esse conjunto de experiências políticas. Entre as características relevantes, destacamos seis.
Primeiro: com a única exceção dos socialistas chilenos (que não rejeitam a denominação de social-democratas), a chegada da esquerda aos governos centrais ocorre como uma reação do eleitorado ao fracasso das políticas neoliberais da década de 1990 em proporcionar melhorias nas condições de vida da população. Mesmo nos países onde as propostas do Consenso de Washington obtiveram sucesso em conter a hiperinflação, os bons resultados iniciais logo se diluíram diante do cenário sombrio que marcou o final do século XX, com baixos índices de crescimento, desindustrialização, aumento do desemprego e da exclusão social, agravamento das desigualdades e desmanche das estruturas de proteção social, que já eram precárias1.
As maiorias desprivilegiadas se viram abandonadas à sua própria sorte, sem poder contar com o Estado como um instrumento de proteção. A dramática derrubada do presidente argentino Fernando de la Rúa, em dezembro de 2001, simboliza, mais do que qualquer outro evento, o colapso das elites políticas tradicionais, incapazes de atender às demandas da sociedade e, em particular, de suas camadas mais pobres. Na maré de insatisfação que varreu a América do Sul, os partidos políticos ligados ao modelo neoliberal foram afastados do poder em todos os países, com exceção da Colômbia e do Chile.
Segundo: Os governos progressistas se constituem por meio de eleições, e não por meio de revoluções, como em Cuba em 1959 ou na Nicarágua em 1979 (Burbach, Fox y Fuentes: 2013: 40) A regra é, sempre, a aceitação dos métodos da democracia representativa, ainda que com a inclusão eventual de elementos da democracia participativa e, na maioria dos países, a presença de uma forte dose de personalismo no exercício do poder e o reforço das capacidades do Executivo (Raby: 2006). Todos esses governantes, sem exceção, devem sua legitimidade à vontade popular expressa em eleições livres.
Terceiro: os líderes políticos de esquerda que chegam à presidência a partir do final do século XX são originários, em diversos casos, das camadas desfavorecidas da sociedade. Essa é uma circunstância que, dada a vinculação entre raça e hierarquia social vigente na América Latina desde a época colonial, se expressa também na sua ligação com grupos étnicos subalternos. Os exemplos são evidentes. Lula, um ex-operário, nasceu em uma família de retirantes nordestinos. O boliviano Morales, líder dos plantadores de coca no seu país, é filho de indígenas (mãe aimará e pai quéchua). E o venezuelano Chávez descende de brancos, negros e índios. Mesmo nos casos em que os governantes provêm da “elite branca”, sua trajetória política se vincula a instrumentos de representação das demandas populares na esfera pública: o partido peronista (Néstor e Cristina Kirchner), a Frente Ampla uruguaia (Tabaré Vázquez e Pepe Mujica), o catolicismo popular da Teologia da Libertação (o presidente deposto do Paraguai, Fernando Lugo), a intelectualidade anti-oligárquica (o equatoriano Rafael Correa).
Quarto: Eles foram eleitos, em todos os casos, em disputas políticas caracterizadas como expressão de um conflito social definido sob o eixo pobres/ricos. De modo significativo, os presidentes progressistas obtiveram apoio amplamente majoritário nas faixas sociais de renda mais baixa, em contraste com a rejeição e com índices menores de apoio entre os eleitores das camadas sociais privilegiadas. Certamente, não é casual a postura hostil que a mídia dominante em todos esses países adotou contra essas lideranças e suas respectivas organizações partidárias.
Quinto: Os governos progressistas foram ou são alvos permanentes de campanhas virulentas das elites dominantes. Por toda parte, os atores políticos situados no campo conservador deixaram claro seu inconformismo com o novo estado de coisas e se mobilizaram para debilitar as autoridades de esquerda ou centro-esquerda, seja com o uso sistemático dos meios de comunicação para apresentá-los de modo negativo, seja com o recurso de meios ilegais para afastá-los do poder (com sucesso, em alguns casos, e fracasso, em outros).
Sexto: A busca do crescimento econômico, avanço das forças produtivas, melhor inserção na economia global. No plano social, políticas públicas voltadas para a inclusão, redução da pobreza e da desigualdade, melhoria geral das condições de vida. Tudo isso, sem romper com as classes dominantes internas nem com o sistema econômico internacional. As gestões progressistas – sejam mais radicais ou mais moderadas – compartilham a ideia de que é necessário recuperar as capacidades do Estado, inclusão com uma forte presença estatal na economia, para promover e orientar o desenvolvimento econômico e social. Nesse ponto, diferem totalmente do neoliberalismo, que tende a priorizar o mercado e a minimizar o setor público. Outro destaque em todas as gestões progressistas é o esforço para recuperar, em maior ou menor medida, o controle estatal sobre os recursos econômicos naturais, especialmente o petróleo e o gás. Esses governantes implementaram políticas sociais de alta intensidade, com redistribuição (limitada) da renda, valorização do trabalho, e “inversão das prioridades”, favorecendo os investimentos públicos em saúde, educação, moradia e infraestrutura, em benefício das camadas populares. Em política externa, destacaram-se pela busca de maior autonomia, numa postura que teve como marco a rejeição, em 2005, do projeto estadunidense da Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA). Aproximaram-se de duas potências que rivalizam com os EUA na cena global – China e Rússia – e o Brasil chegou mesmo a formar com outros países o BRICS, principal referência na busca do multilateralismo no sistema internacional.
Os fatores da restauração conservadora
No plano econômico, esses países passaram por um período de forte crescimento até, aproximadamente, 2012 (o que se projetou até mais além em alguns casos, como o da Bolívia). O que se pode discutir é em que medida esses bons resultados se devem ao contexto global favorável, graças ao ciclo de altos preços das commodities agrícolas, minerais e energéticas na maior parte da década de 2000, e qual foi o grau de influência da ampliação do mercado de consumo doméstico nos bons indicadores.
No plano social, contabilizam grandes avanços em educação, saúde, moradia, transporte, salários, redução da pobreza e da fome – uma medida definitiva para avaliar o quanto foram vitoriosos. Ao contrário dos céticos e dos adversários que previam vida curta para os presidentes oriundos do campo popular, seus projetos políticos – com exceção do caso do Paraguai – mostraram uma admirável longevidade, com sucessivas reeleições presidenciais (ou do bloco político no poder, como ocorreu no Uruguai), sempre em pleitos limpos e de legitimidade incontestável. Pode-se dizer, sem exagero, que cada um desses governos foi o melhor na história do respectivo país, ao menos durante um bom tempo.
Como na famosa metáfora do copo que pode ser chamado de cheio e de vazio ao mesmo tempo, pois contém água apenas em sua metade, é muito fácil identificar as limitações, obstáculos e erros presentes na trajetória desses governos – e que, em alguns casos, ajudaram seus inimigos nas operações políticas para a sua derrubada e, em outros, debilitaram sua governabilidade, gerando muitos dos seus problemas atuais.
Jamais, nem mesmo naqueles países em que a proposta de gestão envolvia mudanças radicais, os governos progressistas conseguiram superar – e nem sequer alterar significativamente – as estruturas econômicas existentes desde o período colonial (Burbach, Fox y Fuentes, 2013:39-43). Permaneceram, todos, a exercer um papel subalterno na divisão global do trabalho – o de exportadores de bens primários e importadores de mercadorias mais sofisticados, sobretudo produtos industriais.
Do ponto de vista político, as limitações saltam aos olhos. Os governantes à esquerda foram conquistaram o comando do Executivo e nele permaneceram durante longos períodos, mas não foram muito longe no controle do restante do que constitui, na visão dos autores marxistas, os aparatos do poder burguês. A mídia permaneceu nas mãos da classe dominante, salvo raras exceções. E a burocracia do Estado se manteve à margem do esforço de transformação da sociedade, adotando em certos casos uma atitude hostil e até mesmo golpista. Nem sempre os presidentes tiveram ao seu lado maiorias estáveis no Legislativo e, na maioria dos casos, fracassaram no intento de controlar o Judiciário e a máquina repressiva do Estado.
O foco nas eleições representou, ao mesmo tempo, uma vantagem e uma desvantagem. As maiorias eleitorais, sem dúvida, foram decisivas para conferir legitimidade aos governos progressistas, de tal modo que, mesmo diante dos mais ferozes ataques, sempre foi possível aos seus defensores responderem: “Esse é um governo democrático, eleito livremente pelo povo.” Por outro lado, a dependência da dinâmica eleitoral, com a necessidade de ganhar todas, absolutamente todas as muitas eleições, impôs limites rígidos às possibilidades de planejamento, obrigando os governos a se reger por uma lógica de curto-prazo, imediatista (Stolowicz, 2007: 350-351). Para derrotar seus adversários em eleições sempre competitivas, algumas delas duríssimas eram necessário oferecer à população sempre benefícios concretos nos prazos mais curtos possíveis, o que certamente inviabilizou projetos de reforma estrutural de maior alcance e duração – e que talvez alienassem partes da base de apoio eleitoral oficialista.
Os governos progressistas falharam também naquilo que o jargão de esquerda chama de “luta de ideias”. Não houve suficiente empenho oficial para associar as inegáveis conquistas e avanços sociais com a orientação política dos governantes. A população mais pobre, a grande beneficiária das iniciativas no campo social, permaneceu em posição passiva, a de recebedora dos benefícios, sem participar das decisões nem se envolver em debates capazes de proporcionar um grau maior de consciência sobre as questões políticas relacionadas com esse ou aquele programa governamental. Despertou muita atenção, nesse tópico, a pesquisa qualitativa feita pela Fundação Perseu Abramo em 2016 com 64 eleitores da periferia pobre de São Paulo que votaram no PT entre 2000 e 2012, mas não sufragaram Dilma Rousseff em 2014 nem Fernando Haddad (o candidato petista à prefeitura paulistana) em 2016. O resultado mostra que os eleitores não reconhecem a existência de uma luta de classes em que patrões e empregados têm interesses opostos, atribuem a melhoria de suas condições econômicas ao esforço individual (e não às políticas públicas) e desconfiam do Estado como “ineficaz” e “incompetente” (Fundação Perseu Abramo, 2017).
Outro tipo de problema diz respeito ao âmbito mais interno dos apoiadores das experiências progressistas: burocratização, ineficiência, despreparo para o exercício de funções de gestão pública. Há ainda o problema (insolúvel?) do personalismo. O papel decisivo de lideranças carismáticas (Lula, o casal Kirchner, Evo, Correa, Chávez) garantiu a unidade política de um amplo leque de grupos, indivíduos, partidos e movimentos sociais em torno de projetos audaciosos de transformação. E a confiança de amplos setores da população nos governantes de esquerda sempre foi inseparável da confiança depositada na pessoa de cada um desses líderes. Sem eles, nada do que ocorreu teria sido possível. Por outro lado, os militantes e dirigentes acabaram por se tornar dependentes de lideranças literalmente insubstituíveis. E o processo político de esquerda nesses países foi afetado pelo fato de que esses líderes são humanos – cometem erros, são incapazes de saber tudo e de estar em todos os lugares ao mesmo tempo e, de vez em quando… morrem.
A partir do final da década de 2000, os governos progressistas sul-americanos passaram a enfrentar uma ofensiva estratégica desencadeada pelos seus inimigos – o imperialismo estadunidense e as burguesias de cada um dos países. Ao contrário do ciclo militar dos anos 1960/1970, dessa vez a estratégia adotada foi a do “golpismo suave”, em que o afastamento de mandatários indesejáveis se dá de maneira a preservar a aparência do Estado democrático de direito, ainda que seus princípios sejam violados (Mattei, 2016). O protagonismo, nesses casos, cabe ao Judiciário e/ou o Legislativo, sempre com a cumplicidade dos meios de comunicação, nas mãos de ricos empresários, hostis aos governantes de esquerda e simpáticos ao realinhamento com os EUA. O próprio golpe de Estado, na realidade, é guardado, de reserva, como opção a ser utilizada apenas quando os demais mecanismos se mostram ineficazes. Na Argentina, a vitória eleitoral de Macri atendeu ao objetivo das forças direitistas sem a necessidade de um golpe, como ocorreu no Brasil.
Os objetivos da restauração conservadora em curso na América do Sul são bem claros. No plano interno, retomar o capitalismo neoliberal na sua integralidade, restabelecendo o poder absoluto das classes dominantes, que passam a aplicar políticas de austeridade fiscal e a desmontar (novamente!) as políticas públicas em benefícios dos setores desprivilegiados. No campo externo, trata-se de realinhar a alinhar América Latina ao campo geopolítico dos EUA e à globalização neoliberal, com ênfase para a adesão aos novos acordos de livre-comércio, voltados para a anulação de todos os elementos da soberania dos países. Um objetivo mais geral, que norteia em grande medida a política dos novos governantes, é o de bloquear qualquer possibilidade de retorno de forças progressistas ou populares ao governo (Regalado, 2017). Por meio da criminalização dos movimentos e partidos políticos da esquerda, e em particular pela tentativa de desmoralização das lideranças mais importantes, trata-se de instaurar um sistema blindado contra qualquer nova tentativa de mudança significativa, que afete os interesses dos donos do poder. Nesse ponto estamos.
Igor Fuser é Cientista político com doutorado pela Universidade de São Paulo (Brasil), professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (Brasil) e do Conselho Docente da Escola Latinoamericana de História e Política. E-mail: igorfuser@gmail.com
1 Para um balanço da catástrofe social resultante da aplicação das políticas neoliberais na América Latina, veja Borón, 2003.
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