A questão do socialismo – II

Wladimir Pomar

Particularmente a partir do final do século 19, o capitalismo acentuou seu padrão de desenvolvimento desigual e descombinado. A dinâmica interna dos países capitalistas mais desenvolvidos os empurrou tanto na direção de um maior desenvolvimento científico e tecnológico, do descarte da força de trabalho e da concentração e centralização monopolista, quanto na direção de crises e colapsos.

O crescente processo de mundialização ou globalização do modo de produção do capital intensificou e ampliou suas crises de superprodução, tanto de mercadorias quanto financeiras, e tornou mais devastadoras suas guerras regionais e mundiais pela redivisão dos territórios coloniais e/ou semicoloniais. No século 20, o capitalismo desenvolvido envolveu o mundo em duas guerras mundiais de redivisão do sistema colonial e inúmeras guerras regionais com objetivos idênticos. Por um lado, ceifou dezenas de milhões de vidas e, por outro, saiu delas contabilizando novos mercados, novos avanços científicos e tecnológicos em suas forças produtivas e maior grau de concentração e centralização.

Ao mesmo tempo, porém, teve que enfrentar dois fatos inesperados e inaceitáveis. Na primeira grande guerra na Rússia foi realizada a primeira revolução a receber a denominação de socialista. E, no período que se seguiu ao término da segunda guerra mundial, na China ocorreu uma revolução democrática e popular, de tendência socialista.

A rigor, a Rússia e a China sequer haviam completado sua transição do feudalismo para o capitalismo. Suas forças produtivas eram extremamente atrasadas, seus mercados internos incapazes de atender às demandas sociais e suas relações de produção assalariadas entremeadas por relações feudais. Nessas condições, a suposição de que o socialismo somente seria capaz de realizar-se em países capitalistas desenvolvidos, cuja missão histórica estivesse completada, sofreu a primeira contraprova.

Na Rússia, Lenin foi o primeiro a notar que, nessas condições de atraso, sua revolução socialista se via compelida a completar a missão histórica que devia caber ao capitalismo (desenvolvimento das forças produtivas a ponto de atenderem a todas as necessidades sociais). O que só seria possível se o socialismo continuasse utilizando, por algum tempo, o mercado como arena de movimento das relações de produção e das forças produtivas.

Ou seja, seu novo Estado socialista não estava em condições de simplesmente organizar a transição da propriedade privada para a propriedade social, como haviam sugerido os antigos socialistas científicos. Sua capacidade produtiva ainda não era capaz de atender a todas as demandas sociais. Em consequência, teria que atuar, por um tempo indeterminado, não só como instrumento de defesa dessa perspectiva, mas também como orientador do mercado no desenvolvimento das forças produtivas e como árbitro da luta de classes.

A admissão da reforma agrária burguesa pela revolução de 1917 havia sido o primeiro indício dessa constatação. E a NEP soviética, ou Nova Política Econômica, foi o reconhecimento de que seria necessário combinar, em cooperação e luta, formas e relações de propriedade capitalistas com formas e relações de propriedade socialista, de modo a esgotar as possibilidades históricas capitalistas e criar as condições para uma nova formação histórica em que a propriedade privada fosse abolida.

Ou seja, nas condições dadas, de atraso no desenvolvimento capitalista, esvaia-se a suposição de que a transição socialista seria apenas o curto período de passagem da propriedade privada para a propriedade social, da superação do mercado como ambiente principal de circulação dos bens, e de liquidação do Estado como principal instrumento de opressão política e social.

Porém, para complicar, a experiência socialista soviética teve que enfrentar a gestação, a eclosão e o desencadeamento da nova guerra mundial capitalista, a segunda no curto espaço de vinte anos. Para tanto, após 1928, realizou a coletivização agrícola e promoveu uma industrialização estatal acelerada, incluindo a fabricação de armamentos, medidas essenciais para o enfrentamento da invasão nazista e para o sucesso da URSS na segunda guerra mundial.

Esse sucesso, porém, induziu os soviéticos a acreditarem que seria possível evitar a combinação das formas de propriedade capitalista e socialista para o desenvolvimento das forças produtivas e que o Estado sozinho seria capaz de realizar tal missão histórica. Jogaram no lixo a tese de Marx quanto ao papel da concorrência no desenvolvimento das forças produtivas, não retornaram à NEP, e impuseram ao Estado a missão de completar sozinho a missão histórica que teria cabido ao capital.

A ausência da concorrência, porém, tanto entre empresas privadas e estatais, quanto entre empresas estatais, levou à burocratização da propriedade social, ao baixo desenvolvimento das forças produtivas, e à incapacidade de atender às necessidades de consumo da sociedade. O socialismo soviético foi incapaz de evitar sua derrocada e o retorno ao capitalismo.

As dificuldades do socialismo soviético, assim como dos outros socialismos nacionais que haviam adotado o mesmo padrão, levaram a China, no final dos anos 1970, e o Vietnã, em meados dos anos 1980, a repensar e a reformar seu desenvolvimento, adotando modalidades de socialismo de mercado. Neste cooperam e lutam formas e relações de propriedade capitalista com formas e relações de propriedade social e estatal, assim como formas de propriedade social e estatal entre si. Tudo de modo a evitar a burocratização, desenvolver as forças produtivas e preparar as condições objetivas para extinguir a propriedade privada quando o desenvolvimento das forças produtivas puder atender a todas as necessidades sociais.

Os resultados dessa combinação, na China e no Vietnã, demonstram que o desenvolvimento das forças produtivas tem sido acelerado. Por outro lado, a luta de classes entre proprietários privados e estatais e trabalhadores assalariados têm se mantido em nível baixo ou intermediário pela ação estatal ativa na distribuição mais equitativa da mais-valia total. Tais resultados provavelmente influenciaram o socialismo cubano a adotar algo idêntico.

De qualquer modo, não se pode descartar a possibilidade, em algum momento, das contradições do sistema misto estatal-privado ou social-privado se agravarem à medida que a burguesia renascida se sentir forte o suficiente para tentar retomar as rédeas do poder de Estado e da sociedade. Não é por acaso que tais experiências consideram estratégica a luta constante e implacável contra a corrupção, já que está é uma das principais armas da burguesia para minar o poder de Estado e colocá-lo a seu serviço.  

Em termos gerais, no processo da luta pelo socialismo, tanto a experiência fracassada do socialismo soviético quanto as experiências em curso dos socialismos de mercado chinês, vietnamita e agora cubano, mostram que nenhuma formação econômico-social consegue ser superada historicamente antes de esgotar todas as suas possibilidades de desenvolvimento.

Nada muito diferente dos inúmeros processos de transição das formações econômico-sociais do passado. O patriarcado conviveu por longo tempo com o escravismo durante a transição histórica do comunismo primitivo para o escravismo. O clientelismo permeou por longo tempo a transição do escravismo para o feudalismo. E o mercantilismo burguês fez parte da transição do feudalismo para o capitalismo por alguns séculos.

Já as revoluções sociais e políticas socialistas em países pouco desenvolvidos do ponto de vista capitalista estão se vendo na necessidade de resolver problemas históricos não solucionados até então pelo desenvolvimento capitalista, utilizando o Estado para construir novos instrumentos econômicos, sociais e políticos capazes de reduzir as desigualdades na distribuição da renda e, a médio e longo prazos, fazer com que as forças produtivas se desenvolvam de modo a comportar relações de produção não alienadas e com a capacidade de suprir todas as necessidades sociais.

De qualquer modo, no século em que vivemos, por um lado, o desenvolvimento científico e tecnológico dos países capitalistas avançados, acelerando a substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto, os aproxima cada vez mais da situação em que a transição socialista é a salvação de milhões de seres humanos. Por outro, a globalização do capital, subjugando inúmeros países à sanha do capital financeiro e ao atraso produtivo, coloca para seus povos o socialismo não só como ferramenta de transição para uma sociedade mais justa e igualitária, mas também como ferramenta de libertação.

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