Gustavo Codas
1964, 2016. O que houve com as esquerdas no Brasil para que os golpes de Estado desses anos tenham interrompido com tanta facilidade os governos progressistas de Jango e Dilma, respectivamente? O que aconteceu com a esquerda – a que fundou o PT em 1980 – advinda da crítica às esquerdas que haviam “permitido” o golpe de 1964?
O debate sobre 2016 está correndo. Há já bastante literatura escrita nesses dois anos, tateando balanços e razões. E dos cursos livres que estão se desenvolvendo em diversas universidades certamente resultarão novas elaborações.
Uma abordagem útil pode ser a da história política comparada, sobre os acontecimentos de 1964 e 2016.
Em 2011, a Editora Expressão Popular reeditou o livro do Dênis de Moraes, A esquerda e o golpe de 64, publicado originalmente em 1989. Além de trazer uma crônica militante dos acontecimentos e dos posicionamentos dos atores sociais e políticos progressistas daquele drama, o autor incluiu entrevistas com alguns dos principais dirigentes das diversas correntes de esquerda daqueles anos.
E finalizou o livro com um pósfacio do uruguaio-brasileiro René Armand Dreifuss, autor do incontornável 1964: A conquista do Estado (Ação política, poder e golpe de classe), publicado pela Editora Vozes (Petrópolis, 1981), um livro essencial para entender o passo-a-passo da conspiração da direita brasileira e do imperialismo norte-americano que resultou no golpe vitorioso de 1964. (Recentemente Paulo Henrique Amorim reclamou porque ainda não temos sobre 2016 nada parecido com essa obra de Dreifuss.)
Evidentemente há semelhanças e diferenças entre ambos momentos históricos. Aqui será sublinhado um aspecto importante.
No livro mencionado, chamam a atenção os desencontros táticos frente ao processo do golpe entre diversos atores das esquerdas em 1964, mesmo entre os que estavam próximos entre si. Faltou uma direção frentista? Era possível? Em 2016, posições de esquerda que estiveram durante a maior parte dos governos petistas divergentes vinham se aproximando – na verdade desde o segundo turno de 2014, diante do perigo concreto da volta dos neoliberais –, em uma dinâmica de enfrentamento ao iminente golpe, o que resultou nas frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. Mas o que, em 2016, chamou a atenção foi a falta de uma tática.
Provavelmente o problema da tática, ou das táticas, tem a ver com uma dificuldade de se pensar uma questão estratégica: um projeto democrático popular pode ganhar a eleição presidencial, mas a institucionalidade na qual essa vitória acontece é a do status quo prévio, a da hegemonia conservadora anterior, com um conjunto de “aparelhos” de repressão ou dominação ideológica orientados a defendê-la. E mais, a vitória eleitoral da candidatura progressista dá legitimidade a essa ordem institucional, que no momento seguinte vai bloquear a avanço democrático popular que essa mesma candidatura vitoriosa deveria expressar.
Entre o golpe de 1964 e o recente, as direitas e o imperialismo aprimoraram a fórmula. Em vez do desfecho do cerco ao governo progressista constituir uma ruptura institucional nas mãos de militares, o golpe pode ser dado por dentro da institucionalidade, com a legitimação dos meios de comunicação e o Supremo Tribunal Federal legalizando o uso espúrio da figura do impeachment pela maioria reacionária do Congresso Nacional.
Para a estratégia progressista, fica a questão: como continuar?, por onde? Como passar do “melhorismo” das primeiras ações de governo às “transformações estruturais” necessárias para continuar avançando em um sentido programático progressista? Há algo na tática que não funciona, porque falta algo na ciência política, da teoria do Estado que utilizamos, para a estratégia e o programa da esquerda.
No Brasil e na América Latina, para tentar mudar de novo a realidade com uma perspectiva progressista, as esquerdas devem voltar a estudar criticamente sua visão do Estado à luz dos impasses vividos.